6.10.08

Se For Chegar

(Janeiro, 2008)


Se for chegar, chegue chegando, inteira, de uma só vez e sem anunciar muito. Surpreenda-me. Chegue abrindo janelas, varrendo tapetes, mudando os móveis de lugar. Não espere que eu abra a porta, que te receba com cerimônias ou festejos, que puxe a cadeira, que sirva o jantar - nem conte com isso. Não indicarei o seu lugar à mesa: escolha um, sozinha.

Se for entrar, faça-o com suas próprias pernas, pois não te carregarei nos braços. Não imagine ouvir de mim as mais belas palavras. Prepare-se para o meu silêncio - e acostume-se à idéia de preenchê-lo de vez em quando. Minha voz está exausta, gastou-se - é minha hora, minha vez, eu preciso ouvir. Aprenda: manifestações explícitas de afeto e admiração me conquistam.

Não me compre pelo que o cartaz anunciava: aquela era apenas a farda que eu usava para uma outra batalha. Pretendo despir-me dela. Pretendo despir-me de tudo. Vou sentir frio - aqueça-me: será sua função primeira. Vou sentir vazio - preencha-me: será sua função diária.

Se me quiser, diga. Mas diga bem claro, em alto e bom som: "te quero!" - e com ponto de exclamação. Diga e repita algumas vezes, porque eu vou demorar para acreditar. Não espere que eu decifre sinais sutis, estou cansado demais dessa tarefa. Não tenha ilusões de exercitar comigo jogos intrincados de sedução e de conquista. Guarde para outra oportunidade - ou para outro homem.

Não pense poder ocupar um lugar, ser outra atriz num mesmo papel - será seu primeiro e último erro. Pretender ser igual lhe conduzirá ao patético das coisas impossíveis. Seja outra. Tenha nome, cara, voz, gesto - tudo novo. Não pense poder me conquistar com fórmulas, com formas - sobretudo com formas: a matéria que me interessa é intangível, inominável. Perceba. Tente entender.

Não me veja ideal de coisa nenhuma. Nem herói. Nem brilhante. Nem nada - nada é o que sou. Sou o que restou. O que o mar devolveu à praia. O esfacelado. O poeta sem pena. O estandarte desbotado de mim mesmo, sem nada a ocultar.

Mais do que qualquer outra coisa, não me condene à sensação da qual estou mais farto, de toda as que há no mundo: não me faça esperar - seja atenta e chegue antes, sempre.

Se assim for, te coloco nas mãos uma chave.
Boa sorte.


*****

Adriana Calcanhoto
"Vambora"

(Adriana Calcanhoto)


***

Um comentário:

Fábio Pegrucci disse...

COMENTÁRIOS RECUPERADOS DO ANTIGO BLOG


enviado por: Luciane
Sua maestria com as palavras... esse texto é lindo, de alguém desiludido, sem forças para lutar, que apenas espera, espera por alguém que o domine...
Esse é o avesso da figura masculina na sociedade, afinal, vivemos numa sociedade machista...
Acho que estou apaixonada...
Em: 27/05/2008 17:42:31


enviado por: Mrs. Pamonha

Isso � melhor até que Haagen Dazs, admito. ;-)
Em: 17/02/2008 22:31:25


enviado por: Camila

Você é bom com as palavras!
Achei muito legal seus textos!

Em: 17/02/2008 10:02:55


enviado por: sol de verão

Site: http://http://www.orkut.com/Profile.a
Vc é simplesmente perfeito...rs
Em: 23/01/2008 22:04:52


enviado por: Tatiane carvalho

Site: http://tatiane.carvalho.blog.uol.com.
Putz... vc postou seu texto de apresentação do orkut... muito legal!!!
Li seu blog com muito cuidado e carinho... adorei seus textos, vc escreve super bem e � claro no jogo de palavras...
Parabéns!!!
Beijocas,
Tati