9.9.09

Você venceu


Eu me lembro de você. Claro que me lembro. Não foram poucas as vezes em que estivemos aqui, neste lugar. Algumas até na mesma mesa, entre outras tantas pessoas. Eram muitas pessoas. Eram outros os tempos, os assuntos. Debates, opiniões em conflito. Era na madrugada, depois de muitas doses que a conversa se inflamava, se enfurecia por vezes. Em mesa de bar sempre se tem a certeza de que é possível resolver todos os problemas do mundo – após a próxima rodada, de preferência!


Você se lembra? Talvez não. Eu me lembro de você, se incomodando com frio, com fumaça. Se enjoando após o segundo copo, não raro pedindo um refrigerante apenas para continuar mais um pouco à mesa. Eu achava engraçado alguém perguntar ao garçom “tem Sprite?”, após ter tomado dois chopps, muito engraçado. Acho que por isso nunca me esqueci de você, que, de toda maneira, era o primeiro a se levantar, sempre deixando sua “parte” da conta e se despedindo. O primeiro a ter sono era você.


Eu me lembro de você, olhos arregalados, diante dos meus excessos à mesa. Comida de botequim, a graça deve estar na falta de rigor com a higiene, não é? Você fazia uma expressão engraçada, entre nojo e desaprovação. Meu gosto pela improvável mistura. Pelo sabor mais nocivo. Pelo prato mais suspeito. Álcool e tabaco. Alho e pimenta. Peixe cru, café forte.


Você não beberia isso, não comeria aquilo.

Não mesmo.


Eu me lembro da sua cara espantada diante de revelações de um língua-de-trapo – e todas as línguas são de trapo depois de uma certa hora. A garçonete, no banco de trás do Fusca. Alguém cujo nome nem cheguei a saber, em pé, no jardim, antes que o marido chegasse. As histórias sobre os cabarés paupérrimos, lugares que você jamais freqüentaria, jamais freqüentou. Sobre as viagens sem destino, de tantos apuros, de dormir em qualquer canto. Seus olhos pareciam querer sair das órbitas. Você, seus medos. Das doenças, dos riscos todos. Você boquiaberto, ouvindo. Reconheço hoje algum sadismo em te contar.


Mas contava.


Das minhas histórias de amor, te contava. Você sabe, se lembra? Minhas paixões, sempre de arrasar quarteirão. De felicidade estrepitosa, exibida. De dores de cotovelo homéricas, de corno epopéicas. Sempre o céu ou o inferno, nunca existiu para mim um lugar entre dois extremos. Você ouvia. Você, sempre tão centrado! Que após um pé na bunda ou um par de chifres, logo já era amigo da ex. Uma pessoa equilibrada, você!


Tão diferentes nós dois, não é?


Mas não havia traço de maldade no meu ser diferente de você, lhe asseguro. Não mesmo. Nunca imaginei te ofender, te afrontar.


Só hoje eu sei que você nunca me suportou.


Nunca imaginei o quanto você achava, intimamente achava, que eu devesse ser punido pela minha perniciosidade. Pela minha promiscuidade, pelos meus abusos. Pela minha falta de modos. Por zombar dos riscos, das regras. Por falar demais, por alardear minhas mazelas como fossem troféus de guerra. Por ser roto, sujo, obsceno – e não fazer questão alguma de ocultar ou me desculpar por isso. Por atentar seguidamente contra minha própria saúde. Por tudo isso – e isso eu não imaginava – você me queria castigado. Era meu merecimento, você achava.


No entanto, passaram-se quase 30 anos, meu camarada, quase 30! E eu ainda estou aqui. Ainda tenho cabelos, dentes. Ainda respiro – e bem, para seu desespero.


Mas, você sabe como é, a gente envelhece, a gente muda. Não há como evitar, não é? Eu, por exemplo, ainda gosto dos bares, mas já não quero mais mudar o mundo, já não é isso que eu passo as noites conspirando, com os cotovelos sobre o mármore da mesa. Minha única ambição, hoje, é não permitir que o mundo me mude. E – você há de convir – essa já é uma grande ambição, não é?


Eu já não encontro vários conhecidos quando chego aqui. Não ando mais em bando. Gente da nossa idade já não conhece tanta gente, você sabe disso, não sabe? É diferente hoje. Sim, sim: com uma mulher, sempre, eu sei que você olha. Eu sei até que você cochicha, que faz comentários, algumas têm idade para serem minhas filhas? É isso que você diz, não é? Pois é, meu camarada, lamento, mas não são.


Mas você observa bem, eu sei. Você sabe como é, que eu gosto de comer, de beber e de conversar, sempre gostei de conversar. É a essência da interação, não é? Conversar sem tempo, sem compromisso, sem ansiedade, sem hora pra levantar da mesa. Um lugar aconchegante, um garçom atencioso. Você sabe, mesinha de calçada não é pra gente, a gente não é menino, a gente tem um troco, pode pagar, não é? Mas eu não posso deixar minha namorada na mesa e ir lá fora rapidinho e voltar, como você, sarcástico, me fala pra fazer. Não tem como, tudo está ligado, é tudo uma coisa só. E você só faz de conta que não entende.


Por isso você vibrou quando soube da novidade, não é? Porque você de imediato percebeu que isso, que esse pequeno detalhe, teria o poder de arrasar com a minha brincadeira. Com uma das poucas coisas que ainda são capazes de me proporcionar prazer genuíno. Com meu derradeiro elo de ligação com aquela chama primitiva, dos meus olhos, naquele tempo. Você percebeu que o golpe era preciso, bem no alvo, você ficou feliz, eu sei que ficou.


Agora você se sente poderoso, não é? Afinal, você tem uma lei com você, foi feita por pessoas iguais a você. Você agora me olha de cima e eu sou o clandestino neste lugar que sempre foi meu! Nas mesas onde eu tramei revoluções. Pelos corredores onde vivi meus amores. Até no palco, onde eu me sentia artista e você me assistia. Resolveram que eu sou inadequado aqui. E você, justo você, que sempre dormiu nas cadeiras, você com a sua rinite, seu fígado sensível, com seu estômago fraco, suas opiniões frouxas, olha só: agora é você que manda, é seu, é tudo seu! Este lugar e todos os outros! Tudo, tudo seu, sem exceções, sem possibilidade de escolha, de opção. É a democracia como você a concebe, não é?


Então ta: será assim, como você sempre quis.

Eu estou saindo, é ao lado de fora que você me relegou.

Você venceu.


Mas antes que eu saia, antes que eu me despeça definitivamente, eu desejo te fazer uma pergunta.


Seja sincero, ao menos agora.


Não é o meu cigarro que te incomoda, não é?

Não é e nunca foi!


Te incomoda o que se desprende do tabaco, sim – mas não pela ponta em brasa e sim pela outra ponta. Não é a fumaça o que te perturba, é o meu prazer! Este – pequeno, trivial, corriqueiro, bobo até – e todos os outros. O meu prazer deletério, mundano, sujo, fugaz, perigoso. São as coisas que você sempre quis fazer, mas tinha medo. É o ódio que você tem pelos trinta anos que se passaram e estamos, os dois, aqui! Exatamente do mesmo jeito, os dois: vivos! Você fica pensando no tanto de coisa que não fez com esses seus temores todos, me vê aqui e não se conforma: de que te adiantou, não é? O que você ganhou mais que eu? Dinheiro, talvez, mas isso não te consola. Você pensa nas garçonetes fuleiras, na última dose daquela bebida barata, no sanduíche de pernil de botequim: e mira na ponta do meu cigarro. Sua vingança, não é?


O que te incomoda, camarada, não é fumaça: é eu ser quem sou e você ser quem é. Mas isso não vai mudar, não há como mudar, assim como não há como mudar o que já passou e o que já foi vivido – ou, no seu caso, o que não foi.


Você me queria doente, não é? Você não confessa, polido que é, mas queria. No fundo, sempre achou e ainda acha que eu merecia. Pois eu devo dizer que, enfim, você conseguiu. Eu estou doente, sim. Mas não é de câncer, cirrose, enfisema, cólera, úlcera, AIDS, sífilis, pancreatite, não é. É de tristeza.

Eu vou sair, sim.


Vamos ver como se vira sem mim.

Vamos ver o que você – e pessoas como você – fazem desse lugar.


Djavan

"Sabe Você"

(Carlos Lyra - Vinícius de Moraes)


26.8.09

Jô, qual é a sua?

faça o que eu digo, não faça o que eu faço


O humorista, ator, escritor, artista plástico, diretor teatral e apresentador de rádio e TV José Eugênio Soares, 71, tem, nas última cinco décadas, sedimentado uma imagem clara: um sujeito inteligente, de vasta cultura, capaz de trafegar pelos mais diferentes assuntos, de espírito irrequieto, opiniões próprias e um proverbial bom humor.


Apesar de assumir publicamente a condição de hipocondríaco, sempre fez piada da própria obesidade: Jô é o modelo de gordo feliz, do tipo que deixa bem claro que jamais abriu mão dos pequenos (e grandes) prazeres à mesa, seja para obedecer os ditames das cartilhas da saúde perfeita, seja em nome de uma silhueta mais “socialmente aceitável”. Aliás, com constância, faz troça das nomenclaturas e dos conceitos tidos como “politicamente corretos”.


Rico, sofisticado, constantemente citado como um dos homens mais elegantes do Brasil, sempre cultuou o estilo bon vivant – e jamais fez nenhuma questão de esconder isso: além da boa comida, a imagem pessoal do multi-artista sempre esteve associada à boa música, carros importados, motocicletas possantes, viagens internacionais, boa bebida e bons fumos – aliás, os melhores: Jô é apreciador de charutos cubanos há muito tempo. Tanto é que os charutos tornaram-se dele uma marca registrada, quase tanto quanto as gravatas borboleta: são inúmeras as imagens dele portando e degustando os cilindrões de tabaco em aparições públicas, inclusive em seu próprio programa, no qual, por algumas vezes, recebeu entrevistados para falar do assunto. Jô ainda aparece fumando charuto em fotos nas orelhas de seus dois primeiros romances, “O Xangô de Baker Street” (1995) e “O Homem que Matou Getúlio Vargas” (1998).



O gosto de Jô Soares pelos charutos é tão notório, que em 1999, o artista lançou uma griffe de charutos com seu nome: produzidos pela empresa D´Angelo, nas Ilhas Canárias, com fumo de procedência cubana, os Charutos Jô Soares foram resultado de longa pesquisa e experimentação do próprio artista, até que se chegasse a um resultado que ele aprovasse.


Matérias da época sobre o assunto:

Globo

Istoé


Jô e seu charuto, entrevistados no programa Roda Viva:

Roda Viva


Evidente que o senhor José Eugênio recebe royalties por ceder o nome artístico ao produto, óbvio.


Então, com base em toda essa história, a foto do rechonchudo artista literalmente vestindo a camisa da delirante campanha paulista de caça ao fumo é uma dessas imagens que me fazem acreditar que o mundo enlouqueceu. Absurdo, sem sentido, esquisito. É o mesmo que ver a Gaviões da Fiel vestida de verde, o Edir Macedo pedindo benção ao Papa ou o João Gilberto em cima de um trio elétrico, rebolando e dizendo que é tiete do Chiclete.


Fato é que Jô – o fumante e grande conhecedor de charutos – é uma das estrelas da campanha, menos pela sua participação em peças publicitárias, do que pelo palanque em favor da “causa” em que transformou seu programa diário, nas últimas semanas.


No dia 4, na antevéspera da entrada em vigor de lei, Jô recebeu o Governador José Serra para uma entrevista. Entrevista, na verdade, é força de expressão: foi praticamente um bate-papo, em que o apresentador limitou-e a “levantar a bola” para o entrevistado falar sobre os feitos do seu governo e, principalmente, defender a aplicação de sua lei – sozinho, à vontade, sem qualquer contraditório, sem contestações de nenhum tipo (nem mesmo as mais óbvias).



A “sala de visitas” do Jô ainda recebeu, em depoimentos gravados, a participação do médico Dráuzio Varella – que, assim como José Serra, é amigo pessoal do apresentador (eu juro que tentei escrever o artigo sem mencionar o nome do Doutor Pop, mas ele está em todos os lugares, como já provei em postagens anteriores).


Para quem não viu, conto ainda que Serra teve o programa INTEIRO só para ele: sim, os três blocos, fato raríssimo nos vinte anos do programa, só acontecido quando da presença de entrevistados extremamente incomuns ou diante de fatos realmente extraordinários – e, lógico, que nenhuma das duas regras se aplica.


Continuando a sua nova fase de engajamento à causa, o charuteiro anti-tabagista Jô Soares, recebeu há poucos dias, a médica pneumologista Iara Finks: jovem, simpática, bem articulada, mas – vamos combinar? – uma ilustre desconhecida, que recebeu dois blocos do programa.


Ganha um Charuto Jô Soares quem adivinhar o principal foco da conversa!


Curioso que, em um dado momento da entrevista, a doutora abordou um aspecto dessa história toda, que a maioria dos patrulheiros histéricos, sejam médicos ou não, costumam “esconder”: que os possíveis males causados pelo hábito de fumar estão ligado a fatores GENÉTICOS. “Tem gente que tem a genética `boa’ pra fumar”, disse. Por isso há, segundo a especialista, fumantes que vivem “até os 90 anos” e não desenvolvem doenças pulmonares, vindo a morrer por outras causas.


Mencionou também que os males provocados pelo fumo, estão sujeitos a “interação entre o fator genético e a condição física” – o que me leva a crer que fumantes obesos e sedentários, como apresentadores de TV charuteiros, realmente correm sérios riscos.


Traduzindo: fumar faz mal, mas não um “mal igual” para todo mundo – e esse “mal” ainda pode ser minimizado por uma boa condição física.


Foi engraçado ver o apresentador-engajado, diante dessa abordagem – pela qual ele certamente não esperava –, tentando sutilmente mudar o rumo da prosa, insistindo na ladainha “fumar mata” e pronunciando a palavra “câncer” mais vezes do que era necessário.


Depois, como parte da arma mais nefasta de discriminação do fumante – a demonização –, aproveitou a presença da médica para exibir trechos de filmes americanos, para provar que, com o passar dos anos, o cigarro saiu das mãos dos “mocinhos” (como o James Bond, de Sean Connery) para os “maus” – como a “nada sexy” e nem um pouco interessante escritora-psicopata de Sharon Stone, em “Instinto Selvagem”: sim, aquela que cruzava as pernas diante dos policiais babacas. Não sei não, mas desconfio que esse tipo de abordagem pode ser um tiro pela culatra.



Para terminar, exibiu cena do filme “Voltar a Morrer”, em que um homem, aparentemente em estado terminal, pede um cigarro a outro homem.


- Você não pode fumar – diz o segundo.

- Já estou morrendo mesmo, que diferença faz? – insiste o moribundo.


Então, depois de acender o cigarro, o enfermo o traga através de um orifício de traqueostomia, para reações de espanto e “nojinho”, tanto do outro personagem, quanto da platéia do programa.


Parece que Jô adora essa cena e a escolheu como “emblema”: no dia da entrevista-recepção ao governador, já a houvera exibido.



Grotesca e fora de contexto, a cena, à primeira vista, é mesmo repulsiva – e atende bem aos interesses dos que tentam pintar os fumantes como uns condenados. Querem impor, de todas as formas, a idéia de que fumar é doença.


- O tabagismo é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde como uma do-en-ça – declarou a doutorinha.


Mas, refletindo só um pouco – coisa que os histéricos abobados têm muita dificuldade de fazer –, se uma pessoa está à beira da morte – tanto faz se por câncer, febre amarela ou por ataque de piolhos –, repito a indagação do personagem: que diferença faz? O que pode ser mais cruel do que negar um pedido simples a alguém que está à morte?


O uso dado pelo programa do senhor José Eugênio à cena, objetiva fazer com que os fumantes olhem-se no espelho e sintam nojo de si próprios – mas eu me sinto é desrespeitado. Mais ainda quando olho para rechonchuda figura do apresentador e penso que, por uma questão de coerência, ele deveria encampar uma campanha semelhante e com a mesma abordagem, contra outra “doença” – igualmente reconhecida como tal pela OMS – ainda mais perigosa do que o tabagismo: a obesidade!


Sim: e certamente não faltariam cenas de documentários médicos, exibindo constrangedoras imagens de obesos mórbidos em estado terminal, jogados em leitos de hospital, vítimas de diabetes, infartos, hipertensão, tromboses, sofrendo por apinéia do sono, doenças articulares, incontinência urinária, insuficiências respiratória, renal, hepática e cardíaca.



Talvez até encontrassem um filme em que um gordão, com o pé na cova, fizesse um último pedido: uma bomba de chocolate, pelo amor de Deus!


E para demonstrar o seu real engajamento, Jô poderia emagrecer: uns 40 quilos, para começar! Afinal, quem pretende difundir uma campanha dessa natureza tem, antes de mais nada, que dar o exemplo!


Aliás, por falar em “dar o exemplo”, eu não o ouvi dizer, nenhuma vez, que parou de fumar. Alguém ouviu? Hã? Pois é, nem eu.


Então, perguntamos: Jô, qual é a sua?

Faça o que eu digo, não faça o que eu faço?


O que motiva alguém a vestir a camisa de algo em tão completa falta de sintonia com sua história, estilo e hábitos? Claro que Jô Soares, o bon vivant, não compactua com toda essa babaquice e nem sequer é favorável a Lei Anti-Fumo! Então, por que?


Um vultoso cachê pela participação na campanha?

Não! Por maior que fosse: Jô é MUITO rico, evidentemente não precisa disso.


O que então? Uma ordem vinda de cima, da emissora que o emprega?

Não também: Jô é independente dentro da Globo e sua pauta sempre pareceu totalmente descolada das diretrizes jornalísticas da emissora.


Então, afinal, o que?


O que eu enxergo, nitidamente, é o seguinte: o factóide da Lei Anti-Fumo marcou o início da temporada de pavimentação do caminho de José Serra à Presidência, e é a esse projeto que Jô Soares está realmente engajado. A estreita ligação dele com o “alto tucanato” paulista é antiga e notória, inclusive com o ex-presidente Fernando Henrique e com o governador Serra, de quem, como já foi dito, é amigo pessoal. Jô tem sido “porta-voz” informal do PSDB e aparentemente sente disso muita vaidade. Mais que isso, aparentemente realmente acredita que Serra na presidência é tudo de que o Brasil precisa. É uma coisa de “os fins justificarem os meios”, eu diria: não, essa não é uma maneira apenas petista de fazer política.


E, convenhamos, para levar um sujeito chato, ruim de conversa e absolutamente desprovido de carisma como o José Serra à presidência, serão mesmo necessários ótimos comunicadores, além de muitos factóides – e logo: Serra terá que deixar o Palácio dos Bandeirantes em Abril do próximo ano, caso realmente seja indicado. Resta, portanto, bem pouco tempo para que seus “simpatizantes” o auxiliem abertamente: como se sabe, uma vez que o candidato esteja definido pelo partido, passa a vigorar uma verdadeira mordaça imposta pela lei eleitoral aos órgãos de comunicação, que não podem, de forma alguma, mostrarem-se favoráveis a um ou a outro.


Se você nunca entendeu porque o Zé Serra, tão preocupadinho que é com os pulmões dos fumantes passivos, não mandou sua lei caça-fumaça para a Assembléia Legislativa logo que assumiu, preferindo deixá-la para a reta final de seu governo, talvez agora tenha uma “dica”.



Nós, velhos boêmios revoltados, não significamos nada nessa engrenagem, voltada para interesses tão maiores. Ninguém está pensando na gente quando o que se enxerga é o poder. E a esmagadora máquina de propaganda do governo resulta no que se está vendo: as pessoas colando os cartazinhos em tudo que é canto e repetindo os blábláblás do Doutor Pop, da mesma forma que repetem os “Hare Babas” da novela, feito uns papagaios descerebrados.


Eu, antes de “me jogar no Ganges”, digo o seguinte: se Serra fosse MACHO, ele teria ido pro PAU com o Lula em 2006, quando a petralhada bandida ainda estava tentando arrumar um jeito de esconder debaixo dos tapetes a sujeira toda que veio à tona no escândalo do mensalão, um ano antes. Ao invés disso, o PSDB –, incompetente, arrogante, pouco patriótico e covarde –, adotou outro caminho. Ao concluírem que Lula era imbatível naquele momento, seus caciques preferiram garantir o feudo paulista: Serra deixou a prefeitura – que assumira um ano antes! – nas mãos de seu vice, e se candidatou a uma eleição que sabia que ganharia com um pé nas costas. Para a eleição presidencial, mandaram o boi-de-piranha Alckmin – e o resto da história todo mundo sabe.


Essa gente não está preocupada com o seu pulmão e nem com mais nada: são políticos, apenas isso. Querem parecer heróis para receberem seu voto, simples assim.


Pensando nos charutos do Jô, lembrando do sorriso cínico do Serra e olhando para os zilhões de cartazes do anti-fumo pela cidade, eu não tenho como não me lembrar da frase “às favas com escrúpulos, senhor presidente!”, proferida, em 1968, pelo Ministro Jarbas Passarinho ao então presidente Costa e Silva, quando da implantação do AI5 – ato que decretou o início do pior momento da ditadura militar.


Acho desnecessário discorrer sobre seu significado.


Mas lembro que, ironicamente, “Às Favas com os Escrúpulos” é título de uma peça de muito sucesso, encenada em São Paulo em 2007, com texto de Juca de Oliveira, inspirado na célebre frase, e direção de ... Jô Soares!



Parece que, sem anunciar, Jô está encenando uma espécie de “segundo ato” do espetáculo. Mas, no papel principal, não está mais Bibi Ferreira!


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13.8.09

Ex-Fumantes

um estudo sobre perversão humana

O ex-fumante é uma espécie do gênero dos chatos-de-galocha, da família dos patrulheiros-da-vida-alheia, pertencente à grande ordem dos filhos-da-puta – a mesma da qual fazem parte os juízes de futebol, os técnicos da seleção, 92,7% da população da Argentina e grande parte dos integrantes do poder legislativo das repúblicas subdesenvolvidas.


Em pesquisas realizadas em várias partes do mundo, os ex-fumantes são sempre citados como, pelo menos, uma das três coisas mais chatas que existem. No Brasil, sua chatice só é comparável à utilização de videokês em festas de aniversário e, talvez, à banda Calypso.





Estão catalogadas várias subespécies de ex-fumante. As mais comuns são:



Ex-fumante tiozão-fodão-esportista


De hábitos matutinos, essa subespécie é vista frequentemente logo pela manhã, calçando tênis caríssimos e uniforme de corredor, malhando nos parques da cidade, antes de ir para o trabalho. Esse sujeito fumou durante uns 40 anos e resolveu abandonar o vício ao mesmo tempo em que largou a esposa gorda pra se casar com a secretária gostosa, melhorou a alimentação e começou a praticar esportes. Sua vida melhorou horrores e sua auto estima foi às alturas – ter parado de fumar, obviamente, corresponde a uma pequena parte dessa metamorfose. Mesmo assim, se ele te vê fumando, olha pra você com um ar de superioridade e faz questão que você note o quanto ele é fodão e que jamais vai conseguir ser como ele. Sim, ele acha que todo mundo quer ser fodão como ele.



Ex-fumante hipocondríaco (ou “rato de clínica”)


Grande responsável pelos altos preços dos planos de saúde, esse sujeito não sai do médico. Faz um checkup completo toda vez que dá um espirro e declama de memória os resultados de todos os exames. Leitor compulsivo de bulas e de reportagens sobre avanços da medicina. Tem cartão-fidelidade em todas as grandes redes de farmácias. Apesar disso, sempre está com o nariz escorrendo ou sentindo alguma dor. Metade das frases que diz se iniciam com a expressão “se eu não tivesse parado de fumar...” e a outra metade termina com “ainda bem que eu parei de fumar”. Coloca a mão no seu ombro com cara de pena para lhe dizer que “o cigarro contém em sua composição 4.700 substâncias tóxicas” – e se você der brecha, ele vai dizer a você quais são. Todas.



Ex-fumante reclamão


Essa subespécie tem como característica marcante o olfato muito apurado. Você sai pra fumar no quintal e ele sente o cheiro lá na sala. Muito agressivo, esse tipo sai de perto de você, caso você acenda um cigarro, não hesita em reclamar caso veja alguém fumando em local proibido e se recusa a entrar em carro de fumante. É do tipo que vai pro botequim ou pra balada e reclama que a roupinha e o cabelinho dele voltaram pra casa com cheiro de cigarro – há estudos que afirmam que a supressão da nicotina pode ocasionar distúrbios hormonais, que por sua vez provocariam uma perturbação psíquica conhecida por boiolicis ocasionalis. Mas esses estudos ainda não são conclusivos. Fato é que a agressividade dessa subespécie se deve ao fato de que esses indivíduos são ainda muito mal resolvidos na condição de ex-fumantes. O cara parou de fumar há pouco tempo, achando que a vida iria melhorar e só o que conseguiu foi ficar ansioso. E engordar dez quilos.




Apesar das diferentes subespécies, todo ex-fumante tem uma característica em comum: se consideram pessoas superiores, verdadeiros vencedores, moralmente mais elevados, melhores que todos os outros, em especial aos ainda-fumantes – que, na visão deles, não passam de uns viciados, fracos, derrotados e incapazes.



O ex-fumante não perde sequer uma oportunidade de mostrar, através de inflamados discursos, o quanto ele é mais sábio e o quanto ele quer (na verdade, ele precisa) que os outros percebam seus méritos. Em termos de capacidade de encher o saco, ele só é comparável aos recém convertidos às religiões evangélicas, desses que juntam rodinhas de curiosos no centro da cidade, enquanto pregam com a Bíblia na mão.



(Aliás, como a primeira coisa que o sujeito que passa a freqüentar essas igrejas faz, é deixar de beber e de fumar, tem-se observado a proliferação da subespécie mutante ex-fumante-crente, extremamente perigosa e cujo comportamento ainda está sendo estudado – talvez tratemos deles em um artigo futuro.)




O problema do ex-fumante é que ele não se contenta em parar de fumar sozinho: ele quer levar todo mundo com ele para o caminho do não-vício! É praticamente um corruptor ao contrário.


Também tem uma necessidade exibicionista de dividir sua proeza com o mundo: se você digitar no Google “diário de um ex-fumante”, surgirão na sua tela uma centena de links para blogs, nos quais essas criaturas escrevem textos chatíssimos, em que narram suas vitórias cotidianas contra a tentação de voltar a fumar.


Eu não sei quem, além deles próprios, lê isso.


Pior ainda é que ex-fumantes costumam se reunir em ONGs para multiplicar o seu poder de chatear os outros e para encher o saco dos governos, pressionando para que sejam criadas leis cada vez mais delirantes e draconianas de combate ao fumo.



Eles juram – muitos até se convencem disso – que têm por objetivo zelar pela saúde das pessoas e salvar muitas vidas: consideram-se verdadeiros super-heróis de história em quadrinhos! Mas na verdade, são movidos por uma gigantesca dor-de-cotovelo: não se conformam que ainda exista gente no mundo que, sem neuras, continua curtindo aquele pequeno prazer do qual eles sentem tanta falta!


Ao contrário do não-fumante, que, por opção, não adotou o hábito de fumar e que, por isso, tem todo o direito até de sentir-se incomodado com a fumaça alheia, o ex-fumante é um filho-da-puta porque ele sabe (e como sabe!) o quanto fumar é bom e absolutamente indispensável em diversas situações cotidianas.


Se ele está com você numa mesa de bar e, logo após o primeiro gole do primeiro chopp, você automaticamente acende aquele obrigatório (e de-li-ci-o-so) cigarro, ele disfarça, mas fica com a boca salivando – e tem o desejo secreto de te matar, enfiando no seu olho o primeiro objeto pontiagudo que ele puder encontrar.


Se após um jantar maravilhoso, com direito a sobremesa, licor e café, você – obviamente – acende aquele cigarro, enquanto esperam a conta, e traga, cheio de prazer (porque não há refeição completa sem cigarro!), ele sente ímpetos de pular no seu pescoço e enfiar os dentes na sua jugular.


Mas ele se controla – e é exatamente nessas horas que ele costuma iniciar seus discursos anti-tabaco.


Começa a falar sobre câncer, enfisema, aneurisma, impotência, queda de cabelo, perda de dentes, caspa (porque, para ele, TUDO é causado pelo cigarro) e toda a sorte de misérias desagradáveis.


Ele tenta fazer parecer que quer te ajudar a parar de fumar, mas é mentira: ele só quer cortar seu barato. Se você lhe dá atenção e, mesmo que só por educação, diz que tem vontade de parar, ele “cresce” pra cima de você – e a pregação fica mais e mais entusiasmada, ele vai enumerar mais umas duzentas doenças que o cigarro causa e vai tentar te convencer do quanto a vida dele melhorou depois que abandonou o vício. Os olhinhos dele brilham nessa hora! Quanto mais você se interessa, mais ele fica contente: fica parecendo que eles – os ex-fumantes – necessitam cooptar fumantes, atingir uma espécie de “cota”.


Agora, se você nem liga para o que ele fala, sorri, se recosta preguiçosamente da cadeira e diz que fuma porque gosta, antes de dar mais uma longa e saborosa tragada e mudar de assunto para futebol, mulher ou qualquer outra pauta mais agradável, ele se come por dentro e deseja secretamente que você tenha um câncer e morra em menos de uma semana – mas se controla.


Quando chega em casa, te xinga de tudo quanto é nome, berra, soca a parede ou se submete a algum tipo de auto-flagelo – qualquer coisa que faça com que ele consiga controlar o desejo de correr para o bar mais próximo, comprar um maço do cigarro mais vagabundo e fumar até explodir.


Para se tornar um ex-fumante, você precisa evitar a todo custo, todas as coisas e situações que pedem, como complemento, o bom e velho cigarrinho.


Pare de beber. Óbvio: além da bebida naturalmente “chamar” um cigarro, se você passar uma ou duas doses da conta, vai perder o juízo e fazer alguma besteira. Na melhor das hipóteses, acender um cigarro. Na pior, pegar a baranga da festa. E, talvez, as duas coisas.


Evite comidas muito saborosas e suculentas, feijoadas, carnes, moquecas, comida mineira – isso tudo vai te dar uma bruta vontade de fumar. Prefira folhas cruas, tofu ou iogurte diet com granola.


Não compareça a eventos sociais do tipo encontrar uns amigos num barzinho. Sempre tem um ou dois filhos-da-puta fumando na mesa. Mesas de carteado ou de sinuca também devem ser evitadas a todo custo.


Não faça sexo. Como todo mundo sabe, um dos cigarros mais saborosos que se pode fumar é aquele que vem imediatamente após uma bela transa. Ou, também, aquele que se fuma durante os intervalos estratégicos, naquele tempo que se usa para beber alguma coisa, ouvir música e bater papo com a amada, enquanto se recobra o fôlego e se retoma a inspiração – mas essa é uma técnica utilizada apenas por usuários avançados e quem a domina, caso seja fumante, dificilmente será alguém do tipo que abdica dos pequenos prazeres da vida. Logo, ex-fumantes que porventura estiverem lendo este artigo, provavelmente nem sabem do que é que eu estou falando.


Ex-fumantes andam extremamente felizes ultimamente! Aliás, alguns não se sentiam tão bem, desde a última tragada. A entrada em vigor da lei caça-fumantes do governador-candidato Zé Serra propiciou orgasmos de satisfação sádica a esses seres. Alguns devem ter soltado rojões. Outros, foram pra rua, à meia-noite do último dia 7, para acompanhar o início da fiscalização, quando os agentes da Vigilância Sanitária, feito uns soldados da Santa Inquisição, começaram a entrar nos botequins da Vila Madalena e outros bairros chiques da cidade, em busca de perigosos delinqüentes tabagistas.



Lógico que eles sabem que essa lei é um absurdo jurídico. Claro que eles sabem que nenhuma sociedade politicamente consciente permitiria essa absurda ingerência estatal na vida das empresas privadas. Evidente que eles sabem também que isso não vai dar certo e essa será mais uma lei fadada ao esquecimento ou a muitos ajustes. E, mais que tudo, eles sabem que esse circo todo destina-se exclusivamente a colocar o governador na mídia.


Ex-fumantes são chatos, mas não são burros.


Mas eles não estão nem aí! Querem apenas curtir o sabor de sua vitória contra essas pessoas que têm o desplante de continuar usufruindo daquele pequeno prazer cotidiano, do qual eles abriram mão. Imagine com que moral eles agora vão chegar às festas de família ou ao escritório e encarar os “inimigos”: aquele seu antigo discurso pentelho, agora tem amparo legal! Que ninguém mais ouse desacatar seus sermões, porque agora – suprema glória! – eles podem inclusive denunciar os infratores!


E para os amigos fumantes de outros Estados, que já estavam se divertindo às minhas custas, as notícias não têm sido muito boas nos últimos dias! Cariocas, mineiros e paranaenses, tremei! Agora é a vez de vocês! E, como sempre acontece, tudo que São Paulo inventa, o resto do Brasil acha legal e importa. Com exceção do Rio Grande do Sul, todos os outros Estados da Federação têm em relação a São Paulo o mesmo complexo de vira-lata que brasileiros têm em relação aos Estados Unidos: se eles têm, a gente também quer ter!


Ex-fumantes têm ainda mais um motivo de extrema satisfação e alegria! O garoto-propaganda da abertura da temporada de caça aos fumantes é o ídolo maior de todos eles. Sim! Ele mesmo! O personagem mais constante deste blog e um dos mais constantes da vida de todo o povo brasileiro: o onipresente, indefectível e infalível médico pop do Brasil, Draaaaaaauzio Vareeeella!!


Doutor Dráuzio é um exemplar legítimo e o exemplo mais bem acabado de ex-fumante. Não contente em ter deixado de fumar, tornou-se o mais implacável caçador da fumaça alheia. E, como é um médico muito respeitado e muito famoso, graças àquele seu livro, que virou filme, mostrando a vida daqueles detentos legais e bonzinhos que moravam naquele extinto parque de diversões chamado “Carandiru”, Doutor Dráuzio é o centroavante perfeito para a seleção anti-tabagista. Credibilidade total, praticamente um santo, faz tudo por convicção e amor ao próximo.


Eu só achei uma coisinha meio estranha.


É que quando a lei Serra foi discutida na Assembléia Legislativa, meses atrás, pela bancada de deputadinhos amestrados do governador, o Doutor Dráuzio foi lá defender a medida – e o fez de forma apaixonada. Meses depois, quando a campanha de divulgação da lei foi pro rádio e pra TV, quem foi escolhido pra garoto-propaganda?


Curioso, né?



Inclusive eu fiquei procurando nos comerciais de TV, se aparecia alguma legenda informando algo como “o doutor Dráuzio Varella doou seu cachê para o Hospital do Câncer” ... e não achei! Vocês acharam? Não? Pois é, nem eu!


Mas isso nem deve representar muita coisa para alguém que vive de dar palestras. Eu imagino – só imagino – que a agenda dele deva estar mais lotada do que nunca.


Eu sou um sujeito muito maldoso, eu sei.


Mas eu ando mesmo muito interessado em saber quanto CUSTOU esse circo todo da lei anti-fumo. Quanto custou em contratação e treinamento de pessoal? E em equipamentos e viaturas (compraram Unos Mille zerinho, só pra isso, um monte deles!)? E , PRINCIPALMENTE, quanto custou em PUBLICIDADE? Eu, que sou um sujeito mesmo muito maldoso e enxerido, sou capaz de apostar que uns 95% da verba foi destinada a esse último item, para alegria dos departamentos comerciais de revistas, jornais, emissoras de rádio e TV que, coincidentemente, em sua quase totalidade, mostraram-se todos extremamente simpáticos à medida e até abriram grandes espaços para que o governador aparecesse em “esclarecedoras entrevistas de utilidade pública”.


E eu ando perguntando isso por aí, exatamente para esses mesmos veículos de comunicação: vocês acreditam que ninguém me responde?

Ando querendo saber também de quanto foi o cachê do Doutor Pop – aquele que ele certamente doou, mas esqueceu de dizer. Eu sou cidadão deste Estado, tenho o direito de saber, não tenho?


Então eu fui até lá no site oficial do governo (http://www.leiantifumo.sp.gov.br/), cliquei no “perguntas freqüentes” e depois em “dúvidas” (eles são legais, deixam a gente escrever num formulário). Então eu perguntei essas coisas todas.


Vocês acreditam que eles até agora também não me responderam?


Mas não tem problema, não.

Agora eu tenho tempo, não posso mesmo mais ir pro botequim.


Eu sou paciente

Eu vou continuar esperando.

Sentado.

E fumando.


The Doors

"Light my Fire"



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