2.10.08

Entrevista de Emprego

Uma crônica de 2002, republicada no "Colecionador de Histórias" em Outubro de 2006.



Nota do Autor:


Em Setembro de 2002, escrevi essa crônica e a publiquei aqui e ali, em alguns sites na Internet - e fui criticado, vaiado, xingado por muita gente que então se enchia de esperança diante da possibilidade de um certo candidato à Presidência da República sair vitorioso das eleições que se aproximavam.

Passados três anos, em 2005, no auge do escândalo do mensalão, quando a bandalheira no governo já se mostrava em toda a sua plenitude, resolvi ressuscitá-la e a publiquei em algumas comunidades do Orkut - houve então quem duvidasse que a mesma fosse datada de três anos antes, houve os que me chamaram de "vidente" ...

Prometo que é a ÚLTIMA VEZ que a publico ... e já estou preparado para os ovos e tomates.


Entrevista de Emprego












O entrevistador entra na sala e já encontra o candidato, parecendo pouco confortável em terno e gravata, meio encolhido na cadeira.

- Boa tarde, como vai? Como tem passado? - cumprimenta o entrevistador.
- Vou bem, sim senhor - responde o candidato, levantando-se e estendendo a mão suada para o entrevistador, mal disfarçando o nervosismo.

O entrevistador passa rapidamente os olhos pelos papéis que tem nas mãos e volta a olhar para o candidato, tentando lembrar-se dele.

- Hum ... O senhor não me é estranho... Vejo aqui que o senhor já tentou essa mesma vaga outras vezes, certo?
- Já, sim senhor - responde o candidato um pouco constrangido -, esta é a quarta vez que eu tento... sabe como é... o desemprego tá bravo... e eu quero muito esse emprego...
- Mas o senhor sabe que somos uma grande empresa... temos problemas como todos têm, claro... Mas sempre há muita gente querendo trabalhar aqui... O senhor deve estar ciente de que há muitos candidatos para a vaga que o senhor pretende.
- Eu tô sabendo, sim senhor - diz o candidato olhando para os pés -, eu tô sabendo... mas é que eu quero muito esse emprego...

O entrevistador anota qualquer coisa na ficha que tem sobre a mesa e volta a falar com o candidato:

- Bem, vamos ver o que podemos fazer pelo senhor desta vez... Vamos ver suas qualificações... Diga-me: o senhor domina idiomas?
- Idiomas?
- Sim, o senhor sabe... línguas estrangeiras... para esse cargo, bem... tem uma certa importância... Inglês?
- Não senhor...
- Francês?
- Não senhor...
- Espanhol?
- Não senhor... Pra falar a verdade pro senhor... eu ainda tô aprendendo a falar português...

O entrevistador ajeita os óculos, dá um suspiro e volta a anotar qualquer coisa. Depois, notando o nervosismo do homem, tenta descontrair o ambiente:

- Bonita sua gravata amarela... Combina com sua camisa azul, o senhor tem bom gosto!
- Ah, obrigado - diz satisfeito o candidato -, são minhas cores favoritas! E além disso, também são as cores da empresa...
- A empresa?
- Sim... as cores da empresa...
- Desculpe... mas as cores da empresa são laranja e verde...

O candidato tenta conter o pânico, gagueja, tenta disfarçar a gafe.

- O senhor me dá licença um minutinho... é... sabe, preciso ir ao banheiro...
- Pois não - diz o entrevistador -, é a segunda porta à direita...

O candidato levanta-se, vai ao banheiro e trinta segundos depois está de volta, agora vestindo uma camisa verde com uma berrante gravata laranja.

- Pronto, agora me sinto melhor... Sabe? Na verdade, estas é que são minhas cores favoritas!

O entrevistador, boquiaberto, imagina que para conseguir aquele emprego, aquele homem seria capaz de tudo - mudar de roupa, de time, de religião...

- Como o senhor deve saber - prossegue o entrevistador -, para desempenhar as funções que o cargo exige, a empresa precisará de uma pessoa de opniões firmes, que saiba tomar decisões...
- Sei, sim senhor...
- E o senhor se considera uma pessoa decidida?
- É... quer dizer... sim... acho que sim... sim, sem dúvida...
- Tem opniões firmes? - fuzila o entrevistador.
- Cof, cof... - tosse o candidato - Tenho, sim senhor...
- Então imagine a seguinte situação: o senhor está a bordo de um barco que vai naufragar numa ilha deserta... e tem que escolher apenas uma coisa para levar consigo, entre uma faca, uma caixa de fósforos e um telefone celular... O que o senhor leva?

O candidato fica pensativo por longos segundos, esfregando as mãos, com o olhar perdido. Depois declara, decidido:

- Eu levaria a faca!
- E por que? - pergunta curioso o entrevistador.
- Porque com a faca eu poderia caçar, colher frutos... e me proteger de animais selvagens - responde contente o candidato, certo de que escolhera a melhor alternativa.
- Sim... mas com os fósforos, o senhor poderia fazer uma fogueira para afastar os animais, além de se aquecer... e até fazer um sinal de fumaça... poderia ser visto por aviões e resgatado...

O candidato lança um olhar de espanto para o entrevistador.

- O senhor tem razão, melhor levar os fósforos...
- Afinal: a faca ou os fósforos? - questiona impiedoso o entrevistador.
- Bem... pode ser uma coisa... ou outra coisa... quer dizer, depende... Mas ...
- Mas o que?
- Pensando melhor, acho que levaria o celular...
- Ah, sim? - diz o entrevistador - Por que o celular?
- Porque com o celular eu poderia ligar para o meu primo.
- Primo? - pergunta incrédulo o entrevistador.
- Sim... Meu primo... Eu não entendo nada desse negócio de ilha... mas tenho um primo que entende... eu ligo pra ele e ele me diz o que fazer - completa o homem, pouco convicto.

Tentando não parecer desolado e desistindo de qualquer eventual explicação sobre o alcance dos telefones celulares em ilhas desertas, perdidas nos confins do oceano, o entrevistador prossegue:

- Bem, vamos avaliar então sua experiência... O senhor sabe... para esse cargo, experiência tem muita importância...
- Eu sei, sim senhor - responde o candidato, parecendo procurar algo perdido no tapete da sala.
- Faz muito tempo que o senhor está desempregado? - pergunta o entrevistador.
- Faz, sim senhor -responde o candidato num tom de voz tão baixo que mal se pode escutar -, faz muito tempo ...

O entrevistador tenta ser simpático e animar o candidato.

- Não é necessário ficar constrangido... O mais importante é que o senhor tem força de vontade... Mas me diga, há quanto tempo exatamente o senhor está desempregado?
- Desde 1979...

O entrevistador, um jovem executivo da área de recursos humanos, que há 23 anos ainda engatinhava, se engasga, toma um gole d'água e retoma a entrevista:

- Tanto tempo assim?
- Pois é...
- Nenhuma atividade profissional durante esse período?
- Bem... pra falar a verdade, eu tive um emprego temporário...
- Temporário?
- É... por volta de 87, 88... era até um emprego bom, bom salário... tinha até benefícios, secretária, assessores... escritório num prédio bacana...
- Hum, interessante... e o senhor não gostava desse emprego?
- Até que gostava... mas depois de um tempo eu fiquei meio entediado... e achei que poderia conseguir algo melhor...
- Vejo que o senhor é ambicioso...
- Pois é... quando eu saí daquele emprego... bem... foi quando eu comecei a tentar esse aqui... Esse sim é o emprego que eu sempre quis... - confessa o candidato, sorrindo envergonhado.
- Como eu disse, muita gente quer - completa o entrevistador -, muita gente...

O entrevistador oferece café, tenta ser gentil. Ele sabe que em sua função precisa ser frio, prático, um erro seu pode significar um grande transtorno para a empresa que representa - mas ele não tinha como negar que começava a simpatizar com aquele sujeito.

- Diga-me - continua o entrevistador -, o senhor, durante esse longo período de desemprego... nunca tentou uma outra vaga? Quero dizer... uma função... como diria? ... Menor? Com menos responsabilidades e que exigisse menos qualificações?
- Não tentei, não senhor...
- O senhor sabe... algo que permitisse acumular alguma experiência...
- Não tentei, não senhor...
- O senhor sabe, como dizem... um degrau de cada vez...
- Até me falaram isso... várias vezes... o senhor sabe... a família, os amigos... alguns me falaram isso... Mas... sabe... esse emprego aqui é o que eu sempre quis...

O entrevistador continua:

- Permita-me perguntar... durante esse seu período de desemprego... Bem, exceto durante aquele seu emprego temporário... Como o senhor tem se virado? Desculpe perguntar... mas do que o senhor vive?
- Ah, sim! - o candidato esfrega as mãos e sorri - Sabia que o senhor ia me perguntar isso... É que eu tenho muitos amigos... eles me ajudam...
- Amigos?
- É, meus amigos me ajudam... Um me emprestou um apartamento... e nem me cobra aluguel... Outros me pagam o supermercado, a escola das crianças, a conta de luz, de água... Outros me pagam o telefone, a TV a cabo...
- Puxa! - surpreende-se o entrevistador - O senhor deve ser bem popular...
- É... os amigos... o senhor sabe... todos eles acham que eu tenho muito futuro - diz o homem, acariciando a barba grisalha -, então eles me ajudam...
- Hum, entendo ...

O entrevistador, sem nada entender, prossegue:

- O senhor deve saber que esse cargo que o senhor quer tanto... bem, refere-se à área administrativa...
- Sei, sim senhor - responde o candidato.
- Pois bem... O senhor tem alguma experiência anterior na área? Mesmo que muito antiga? O senhor sabe, antes de 1979? - pergunta o entrevistador, aparentemente torcendo para uma resposta afirmativa e imaginando como seria o mundo em tempos tão remotos, quando as pessoas usavam calças boca-de-sino e a Internet não existia nem em filmes de ficção científica.
- Não senhor, nenhuma...
- Nenhuma?
- Não senhor...
- Mas... nem em uma empresa de menor porte?
- Não senhor...
- Mas, mas... nem um cargo de menor importância? Qualquer coisa, qualquer experiência na área...
- Não senhor - diz o candidato já pensando em se levantar e desistir para sempre daquele emprego -, eu nunca administrei nada, não senhor...

O entrevistador fita o candidato por alguns segundos, volta a anotar alguma coisa e depois pergunta:

- Sem nenhuma experiência, como o senhor pretende desempenhar as funções próprias desse cargo que o senhor tanto almeja? O senhor quer dizer que... não sabe administrar?
- Eu não sei, não senhor... mas tenho muita vontade de saber...
- E o senhor acha que isso é suficiente? - pergunta o entrevistador, tentando conter a irritação.
- Não sei, não senhor - responde o candidato -, não sei como é essa tal de administração, mas...
- Mas?!
- Eu tenho muitos amigos que sabem! - diz o candidato, pela primeira vez levantando os olhos na direção do entrevistador e esboçando um sorriso.
- Como?!!
- É... como eu já falei... tenho muitos amigos... me prometeram que se eu conseguir esse emprego, eles vão me ajudar...

O entrevistador afrouxa o nó da gravata, tira os óculos, olha para o candidato:

- Mas... que amigos são esses?
- Bem... - responde o candidato tentando parecer confiante - Alguns são amigos antigos, o senhor sabe... companheiros mesmo... sempre prometeram me ajudar quando eu conseguisse esse emprego... Companheirões mesmo, o senhor entende, não entende?
- Hum, sei... Entendo... - responde o entrevistador - Devo supor que são os mesmos amigos que têm lhe ajudado durante todo esse tempo de desemprego...
- Esses mesmo! - diz o candidato abrindo um grande sorriso, agora cheio de confiança.
- E há outros amigos? - pergunta o entrevistador.
- Há sim, muitos outros... amigos novos, o senhor sabe...
- Sei...
- O senhor sabe como é essa vida de desempregado... a gente tem muito tempo livre para fazer amizades, conhecer muita gente...
- Sei...
- Alguns dos meus amigos novos têm até experiência nessa tal de administração que o senhor falou...
- Sei...

O candidato chega mais perto do entrevistador, faz tom de segredo e fala em voz mais baixa:

- Eu tenho alguns amigos que até já ocuparam esse cargo...
- Sei... - diz o entrevistador, já completamente desconsolado - E eu tenho certeza que eles também prometeram que vão lhe ajudar muito... caso o senhor consiga esse emprego...
- Isso mesmo! - o candidato já era todo animação e confiança.

O entrevistador finge fazer alguma anotação na ficha do candidato - na verdade desenha uma caretinha de palhaço, enquanto pensa em que parecer dar à diretoria da empresa sobre aquele insistente candidato.

- Para terminar nossa entrevista - diz o entrevistador -, quero lhe fazer uma última pergunta.
- Pode fazer, sim senhor...
- Caso o senhor não seja aprovado e mais uma vez não consiga o cargo... bem, o que o senhor fará?

O candidato, já notando que havia uma grande possibilidade de que ele mais uma vez voltasse para casa sem conseguir o tão sonhado emprego, olha tristemente para os sapatos durante alguns segundos; depois, levanta a cabeça e responde:

- Bom... Caso vocês não me aceitem desta vez... bem... daqui uns tempos... eu volto e tento de novo!

O entrevistador pede que o candidato o aguarde na sala e retira-se por alguns momentos; em seguida, retorna e estende a mão para o candidato, que levanta-se tropegamente e suando frio, à espera do veredicto:

- Parabéns, senhor Luís Ignácio! - diz o entrevistador - Finalmente o senhor conseguiu: é o novo presidente da empresa!


Vamos ajudar o Lula a criar os 10 milhões de empregos que ele promete! Caso ele seja eleito, só faltará criar mais 9.999.999!


Setembro de 2002

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