2.10.08

Uma Outra Carta Sem Destino

(Abril de 2006)


Agora há muito tempo.

O tempo sobra e por isso não tenho pressa. Desperto devagar e devagar tomo as providências obrigatórias do início do dia - mas agora há bem pouco de obrigatório. Piso na rua muito depois, gosto de caminhar assim, sem pressa, de jeans e tênis, com descompromisso. Gosto da jaqueta de vários bolsos onde alojo pequenos objetos. Gosto dos óculos escuros, sem os quais não vivo, ainda que sol não haja - e sol não há. Abrigado pelas lentes tenho a ilusão de que sou invisível. Ninguém poderá constatar meus olhos vermelhos de quem acordou tarde.

Eu gosto assim. Um prazer pequeno.

Agora eu posso ter o pensamento solto, despregado da realidade e do relógio: ninguém espera por mim ou por minhas atitides. Nada e ninguém a me cobrar palavras, ações, motivos, emoções. Nenhum motor a me impulsionar na direção de conquistas, aprimoramentos, vitórias. Nada a me impulsionar em direção nenhuma. Nenhuma platéia a avaliar meus méritos. Posso então, sem culpa e sem vergonha, sentir preguiça e cansaço diante do ato mero de existir, exercitar impunemente o não-fazer.

Eu gosto assim. Um prazer pequeno.

Quem precisa de emoções arrebatadoras, de paixões ensandecidas, de sentimentos conflitantes, das facetas multicoloridas dos grandes romances - da sutileza dos toques de olhar ao êxtase da quase-fusão de corpos e almas -, quem precisa?

Penso vagamente na vida das pessoas que têm existências lineares, de encaminhamentos óbvios e desfechos previsíveis - as invejo às vezes.

Mas só às vezes.

Conformo-me com o destino claro de viver uma vida de ciclos - com inícios e finais, encontros e separações. Sou assim, por responsabilidade exclusiva de minhas próprias inquietações, as que jamais consegui domar - se é que um dia tentei. Acostumei-me já com a época de me despir de tudo, de jogar ao chão tudo quanto construí, tijolo por tijolo, parede por parede - e ir visitar o fundo dos poços mais profundos, onde residem meus medos mais inconfessáveis, minhas angústias de sempre, a tristeza e a solidão.

A diferença hoje, é que de tão conhecida a viagem, a faço sem medo.

E é assim, protegido por lentes, jaquetas e couraças imaginárias, que caminho por sobre a terra arrasada e docilmente me entrego de corpo e alma para que o tempo me abarque com seus efeitos analgésicos e terapêuticos - e aguardo paciente que me sejam desfraldados ao longe novos, joviais e belíssimos horizontes.


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Um comentário:

Taimemoinonplus disse...

Isso mesmo: beber, cair, levantar! rs

Brincadeirinha, foi licença poética! rs

Prescrição e posologia: ouvir " Apesar de você" por no mínimo meia hora diária.