3.10.08

A Dona da Voz

(Maio, 2007)

Somos só nós dois, caminhando, por um gramado imenso que parece não ter fim. Um vento gostoso, nem quente, nem frio, remexe meus cabelos. A sua mão direita segura a minha mão esquerda, firmemente. Caminhamos apenas, nada falamos.

Eu olho para você e vejo um sorriso no seu rosto, a expressão plácida, serena, os olhos brilhando - como sempre brilharam e brilham em todas as vezes que olham para mim. Mas agora você não olha para mim, olha em frente, com ar satisfeito e decidido, me conduzindo pela mão - você parece que sabe onde quer chegar e está me levando para lá.

Você está vestido de branco, calça e camisa quase aberta, brancas - e está descalço. Sinto a umidade da grama sob meus pés e então me noto também descalça! Eu, que não gosto de andar descalça, sinto um grande prazer de sentir o frescor das folhas. Também estou de branco: um vestido branco, leve, quase transparente, que eu não conheço.

Sobre a imensidão verde, um céu azul com matizes avermelhados e lilases me diz que é fim de tarde - e noto que caminhamos para o poente. Presto mais atenção e então vejo um sol gigantesco, descendo solene sobre a linha do horizonte.

Volto a procurar pelo seu olhar, na esperança de que você me diga para onde estamos indo - mas você não me olha: continua com um sorriso enigmático nos lábios, uma expressão feliz nos olhos, mas não me olha. Lembro-me do começo, das primeiras vezes - do tempo em que você evitava me olhar nos olhos. Nos amávamos e eu buscava seu olhar aflitivamente, muitas vezes - mas você não me olhava, como se soubesse que, no dia em que me entregasse seu olhar, eu veria o homem que você não queria me mostrar e o tragaria todo para dentro de mim, irremediavelmente, para sempre; e você, no dia em que isso acontecesse - sabia -, perderia o controle e já não se pertenceria mais: era seu grande medo!

Fatos tão belos e tão poéticos da nossa história!

O vento bate novamente e traz um som aos meus ouvidos: reconheço a voz divinal muito ao longe da mulher que canta.

- Eu sou teu olho no meu ...

Volto a olhar para você com uma grande interrogação aflita no rosto - e noto que seu sorriso aumenta, como aumenta o ritmo dos seus passos, conduzindo os meus.

- Teu sonho mirando o céu ... No céu azul desse amor...

A voz parece mais próxima, ainda confundida entre os sons que o vento faz ao bater nos meus ouvidos. Você me conduz, aparentemente convicto de que caminhamos na direção da voz - mas a voz parece começar a brotar de toda parte, do céu, da terra: e começa a dominar tudo, como se nos envolvesse.

- O amor que pedi a Deus ...

A voz magistral, associada a tantos e tantos de nossos momentos de paixão, a que nos fez rir e chorar por tantas vezes, quase um combustível do nosso amor, por tantas vezes: é ela, reconheço! Busco novamente o seu olhar mas encontro seu sorriso anda mais aberto - e noto uma lágrima descendo-lhe pela face iluminada. Seus passos aumentam mais de ritmo conduzindo os meus e agora corremos: corremos descalços, vestidos de branco, por aquele gramado infinito, com um sol glorioso se pondo à nossa frente e com a voz sublime cada vez mais forte, cada vez mais próxima, como se estivesse DENTRO de nós!

- Onde nada se perdeu, onde eu sou você ... Onde você sou eu!

Corremos por mais um tempo que não calculo, eu corro olhando de lado, para você, que não me olha, apenas olha em frente, sorrindo.

Subitamente você para - e eu também, mas sem parar de olhar para você. Vejo-o imóvel, ofegante, olhando fixamente para frente, como que petrificado. Com o coração aos pulos, viro lentamente meu rosto para a mesma direção em que você olha, para frente - mal posso acreditar.

A Dona da Voz está diante de nós, a poucos metros, linda, agora silenciosa, sorrindo serena, clara, quase translúcida, uma aparição vestida de branco como nós, descalça como nós - mas um pouco mais ao alto, pois seus pés não tocam o chão.

Permaneço paralisada por incalculáveis instantes, sentindo sua mão suada presa a minha e maravilhada diante de visão diante dos meus olhos.

Uma toalha branca surge aos nossos pés e sobre ela nos sentamos, diante Dela, que permanece sorrindo placidamente e em silêncio. Então noto que você me olha, finalmente: me olha e seu olhar entra dentro do meu. Nesse exato instante o tempo para. O vento para de soprar, o sol deixa de aquecer e interrompe seu movimento rumo ao poente, os sons cessam, o tempo para - e você me diz, entregando-me seu olhar, em silêncio, mais do que um milhão de palavras poderiam fazer; e ao entregar-me seu olhar, ali, com o tempo parado como se todo o universo aguardasse, você me entrega as derradeiras chaves para o fundo mais fundo de sua alma - e a consciência do que me faltava compreender me invade como se uma comporta se abrisse.

Agora eu entendo.

Você então me beija, nos beijamos - e o vento volta a soprar, o sol a aquecer: o tempo retoma seu ritmo.

Voltamo-nos então para ela, a Dona da Voz: agora ela vai cantar.

Vai cantar só para nós.








Maria Bethânia, show "Dentro do Mar Tem Rio"
(Sorocaba - SP - 19.05.2007)

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Um comentário:

Fábio Pegrucci disse...

COMENTÁRIOS RECUPERADOS - POSTADOS NO ANTIGO BLOG


enviado por: rafa
coisa mais linda, parece um sonho
Em: 06/07/2007 20:30:44