(Março, 2008)
"Me chamam de hermética. Como é que se pode ser popular, sendo hermética? Eu me compreendo. De modo que eu não sou hermética para mim..."
Clarisse Lispector
Cansei-me do compromisso com a clareza! E com a coerência também. Deve chegar um tempo na vida de uma pessoa em que certas coisas passem a ser admissíveis. Acabo, pois, de decretar que o tempo de esforço em me fazer compreender terminou – pelo menos por hoje. Eu mesmo já não empreendo tal esforço.
Mais um dia ou menos um dia – tanto faz o referencial.
Mas é um de cada vez: é assim este tempo.
Expectativas?
Não, obrigado!
Tanto faz, se é expectativa ou memória – que diferença faz?
Basta que eu imagine que a porta se abriria e ela trajaria um surpreendente vestido florido. Ela pularia no meu pescoço, me abraçando e apertando – e eu notaria que já não me lembrava bem do abraço, dos contornos do seu corpo. Sim, ela era assim, magrinha, leve, bem leve – eu gostava dela ser assim. Seu rosto, assim de perto, pareceria mais jovem – quase um pouco infantil! – do que eu achava que era. Seriam os mesmos os seus cabelos, os mesmos de antes, quanto tempo? Uns dois anos atrás, quase isso – o que não faz mais a menor diferença.
Eu não me sentiria totalmente à vontade no início. Mas logo ficaria. Bem rápido. Talvez em umas quarenta e oito horas eu já estivesse suficientemente à vontade até para interferir na escolha de sua roupa – apenas porque eu gostaria de vê-la com as costas nuas, os ombros à mostra. Gosto muito deles. E caso ela aceitasse essa minha interferência, eu receberia como um gesto de amor.
Seria então uma noite boa para não se falar nada sobre as coisas que magoam, entristecem, conturbam – uma pausa, uma existência paralela. E eu experimentaria uma sensação há muito perdida: a de estar acompanhado por alguém que comigo estaria por vontade própria, sem que eu tivesse que insistir – deveria ser sempre assim! –, a mesma vontade tantas vezes expressada e reafirmada: eu me lembraria que fora assim, muitas vezes.
A distância, o tempo: a saudade.
Curioso, mas nem um pouco divertido, nem engraçado: é à distância que eu me reabasteço da certeza de ser amado! Assim, de longe e com o passar do tempo, eu vou sendo novamente edificado em amante imprevisível, em escritor intrigante, em ícone sexual. Vou crescendo e crescendo: viro lenda.
Conheço a engrenagem e me aperfeiçôo em sua manipulação. Com tato de ourives. Com olhos de lince – muitos, muitos olhos, em toda parte. Não sem alguma dor, aprendo mais: se os técnicos de futebol passassem a assistir os jogos da arquibancada talvez não cometessem tantas bobagens. Não queria que fosse assim, mas assim é.
Eu sou o dono do tabuleiro.
(Nicolau Maquiavel morreu em 1527. Talvez já tenha reencarnado e desencarnado neste plano umas tantas vezes. Mas onde estiver, deve sentir a glória suprema de todo pensador: a de se tornar, mais do que referência, adjetivo)
Mas os seus olhos brilhariam iluminando a escuridão, ao avistarem a catedral gótica, surgindo imponente no meio da caótica paisagem urbana da cidade estranha. A grande e misteriosa cidade estranha.
Então ela diria: eu vou me casar aqui!
Note-se: ela não diria “eu quero”, “eu pretendo”, “eu gostaria de”.
Não!
Ela diria: eu vou me casar aqui!
Eu, que ainda reteria na memória a singeleza da pequena igreja, da pequena cidade de interior, me divertiria muito ao ouvi-la dizendo aquilo.
Talvez sofresse um pouco ao ouvir o samba antigo do Ismael, tão lindamente entoado: “Antonico”, por si só, já me remete à umas lembranças emocionais e talvez eu me sentisse agora o próprio “Nestor”, aquele a quem é “necessário uma viração”.
Mas não. Não hoje.
Talvez eu desabasse ao ouvir então, a introdução inconfundível do piano, anunciando a canção-emblema, a melodia solada no baixo acústico – e solada no baixo acústico com arco! – , apenas sugerindo o poema que diz: “Sim, me leva para sempre, Beatriz ... “.
Mas não. Não hoje.
Não sei o que as águas deste Março fecham, além do verão.
Mas algo é diferente.
Experimento as mudanças em mim.
Experimento devagar.
Sexo deixou de ser ambição. Não é a falta dele que me faz entrar em possível crise de abstinência, mas a de outro artigo muito mais raro: romance.
Eu pensaria nisso, no fim da noite, já madrugada, após o jantar, enquanto tentasse lhe colocar na boca um grão de café coberto de chocolate: pensaria que poderia saborear sua presença em minha casa por vários dias. Pensaria nisso, mais tarde, ao vê-la adormecida em minha cama.
Gostaria de adormecer ao lado dela, mas não poderia.
Talvez em um outro tempo, quando eu não mais estivesse tecendo à distância a minha amarração com essas cordas imprevistas. Quando eu parasse de pensar que ser um contador de histórias tão bom, fez de mim uma ameaça indesejável. Quando eu deixasse de temer a perda do amor que me fez melhor – e que esta me faria regredir.
Há tão pouco tempo eu sentia e expressava tantas “vontades” – e era tão sincero!
Mas agora, inundado dessa preguiça monumental, eu não quero mais nada. Não por hoje. Não quero sequer me importar com a espera pelo e-mail que nunca chega, com o celular que nunca toca - com a palavra que nunca me é dita, mas sempre esperada de mim!
Muito menos quero me importar com a clareza ou a coerência do que digo.
Ou do que penso.
Mas quero falar da admiração que sinto pelas pessoas que manifestam suas vontades – e o fazem com a máxima intensidade, com brilho nos olhos suficiente para iluminar a catedral gótica no meio da noite – ao contrário dos que ficam em casa, sofrendo em silêncio. Da admiração que sinto pelos que não temem ouvir o ruído das verdades, não se diminuem pelo ato de pedir para receber o perdão, que ousam voltar atrás!
Clareza? Coerência?
Ah, vida longa ao hermetismo de Março, fechando o verão.
É promessa de vida no meu coração?
Ter fé não é esperar pelo impossível - é acreditar no inacreditável quando ele já está acontecendo.
E aceitá-lo.
Ou não.
14.03.2008
O deserto que atravessei
Ninguém me viu passar
Estranha e só, nem pude ver
Que o céu é maior
Tentei dizer, mas vi você
Tão longe de chegar
Mais perto de algum lugar
É deserto, onde eu te encontrei
Você me viu passar
Correndo só, nem pude ver
Que o tempo é maior
Olhei pra mim, me vi assim
Tão perto de chegar
Onde você não está
No silêncio uma catedral
Um templo em mim
Onde eu possa ser imortal
Mas vai existir
Eu sei, vai ter que existir
Vai existir nosso lugar
Solidão, quem pode evitar?
Te encontro em fim
Meu coração é secular
Sonha desaba dentro de mim amanhã
Devagar, me diz como voltar?
Se eu disser que foi por amor
Não vou mentir pra mim
Se eu disser "deixa pra depois"
Não foi sempre assim
Tentei dizer, mas vi você
Tão longe de chegar
Mais perto de algum lugar
("Catedral" - Tanika Tikaran - Versão: Christiaan Oyens / Zélia Duncan)
***
6.10.08
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Um comentário:
COMENTÁRIOS RECUPERADOS DO ANTIGO BLOG
enviado por: Sarah
Achei lindo...
Em: 18/04/2008 23:08:15
enviado por: Debora
Site: http://http://www.paralerepensar.com.
Um dia, dois amigos estavam tristes, falando de amor... Dai o moço falou que feliz eram aquelas pessoas de existências lineares, sem mtos amores, sem mtas paixões... Mas a moça respondeu que poderia até ser, mas ser� que ambos, com suas intensidades de sentimentos conseguiriam viver na eterna abstinência de amor? Acho que não. Mas esse sentimento tão intenso, mas ao mesmo tempo tão dolorido nos faz viver como eternos viciados em busca da sua cura...
Em: 19/03/2008 12:58:19
enviado por: *****
Haagen Dazs. :)
Em: 15/03/2008 22:41:58
enviado por: Camila
complicado!
mas bom.
Em: 15/03/2008 19:13:01
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