6.10.08

Os Desafinados

(Setembro, 2008)

Para um espectador menos atento ou um resenhista mais apressado, “Os Desafinados”, filme de Walter Lima Jr. recém estreado, pode parecer uma obra sobre música – não é.

Pode parecer também mais um quase-documentário sobre uma época – do bom astral do final dos anos 50, da bossa-nova e de Juscelino, até o início dos anos 70, da barra pesadíssima da ditadura militar. Também não é.

A música está lá, sim, como quase personagem da trama.

E é uma música feita não só por banquinho & violão, mas também piano, flauta, baixo acústico, letras de romantismo suave, toda a “atmosfera” de uma bossa mais “Menescal & Bôscoli” – ensolarada e juvenil – do que “Tom & Vinícius” – mais substanciosa, musical e poeticamente.

Está na bela cena da improvisada jam session reunindo os jovens músicos brasileiros e uma banda de músicos negros de jazz, num esfumaçado club nova-iorquino.

Está no desejo do baixista Geraldo (o simpaticíssimo Jair Oliveira) de trocar seu elegante mas enorme contra baixo acústico por um Fender Jazz Bass – modelo que tornou-se um clássico e era moderníssimo na época – e no brilho de seus olhos, mais parecendo uma criança numa loja de brinquedos, ao entrar numa loja de instrumentos nos Estados Unidos: havia grande dificuldade em se adquirir instrumentos importados no Brasil de então.

As transformações ocorridas, em todos os aspectos, no Brasil, ao longo da época retratada, também estão lá, como pano de fundo ou – para usar uma pertinente metáfora musical – como contra ponto da história.

Está na indumentária dos personagens-músicos, de engomadinhos – obrigatórios ternos, gravatas e brilhantina – no tempo da bossa ao visual riponga dos anos 70.

Está na mudança da poesia que “veste” as canções, desde a ingenuidade dos “barquinhos” e “amorezinhos” (“Tudo muito inho! – conforme classifica o aprendiz de cineasta Dico, vivido pelo hilariante Selton Melo) até as canções de protesto.

E está, sim, na drástica alteração do momento político, partindo do clima democrático e culminando com a ditadura militar, ao retratar o seqüestro do músico Quim (Rodrigo Santoro), sem qualquer razão aparente, na Argentina (inspirado em um acontecimento verídico) e na violenta interrupção de um show-protesto pela polícia, no Brasil (também inspirado em vários acontecimentos verídicos de triste memória).

Mas muito mais do que isso, “Os Desafinados”, na verdade, é uma delicada crônica sobre amizades, paixões, relações humanas – permeadas por sonhos e objetivos compartilhados. Sobre jovens nada taciturnos, nada bem-comportados, nada sombrios – muito pelo contrário! – mas também nada fúteis, nada vazios, nada exibicionistas. Sobre amizades que duram, sobre paixões que atravessam anos, sobre envolvimentos que se enraízam – e sobre pessoas que viveram em um tempo em que essas coisas aconteciam: uma lufada quente de ingenuidade apaixonada que dificilmente poderia ser ambientada em tempos atuais.

(Nós, das gerações posteriores e que chegamos à este estranho século 21, é que parecemos, em algum momento e por muitas razões, ter desafinado no trato com nossos afetos...)

Na ardente Glória (interpretada por uma bela e carismática Claudia Abreu) está a síntese desses tempos e dessas pessoas que parecem cada vez mais raras: uma mulher dessas de que se tem saudade, por sua combinação de beleza, talento, ousadia, atrevimento, paixão.

O roteiro não muito bem costurado e o final meio forçadinho estragam um pouco o produto final, mas não comprometem o que o filme tem de mais valor: emoção.

“Os Desafinados” é um filme para se assistir com os ouvidos, sim, mas muito mais com o coração.




Um comentário:

Fábio Pegrucci disse...

COMENTÁRIOS RECUPERADOS DO ANTIGO BLOG


enviado por: Carla Bacellar

Fotografia dos sonhos...

carioca feliz da vida em São Paulo:

"Ninguém precisa ser expert em arte para se apaixonar perdidamente por alguma obra que desvie nosso olhar do óbvio e nos mostre o belo (até mais que o belo, entende?).

Foi assim que me senti quando vi esse filme. Fiquei paralisada, petrificada de admiração e boquiaberta com a beleza de uma fotografia que, por alguns instantes, me transportou para uma época que o Fábio conhece como ninguém ...

Acho que no dia em que essa fita foi feito, o mar devia estar de ressaca ou o tempo estava mudando... rs... Com certeza estava entardecendo.
A nitidez das pegadas não deixavam dúvidas. Pouco antes, várias pessoas devem ter passado por lá.

De repente, caí em mim e me dei conta de que estava diante de um tempo que não volta jamais... .

Pena que não dava para trazer todas as cenas para casa; mas algumas delas, graças ao Fábio, posso me dar ao luxo de ter tido o privilégio de um dia ter vivido ....
Em: 16/09/2008 21:06:24


enviado por: Cherrie
Site: http://www.cafelaemcasa.blogspot.com
E o que me deixa mais feliz com os Desafinados é ver você voltando a escrever com o coração...
Em: 07/09/2008 11:07:45


enviado por: KK

... e o Scorps acerta a mão na receita, sempre!
Em: 05/09/2008 23:01:48


enviado por: Nyara

Como sempre....muito bem feito o seu comentario sobre o filme!!!
Em: 05/09/2008 19:14:11