(Agosto, 2007)
Eu te olho e te sinto, te escuto e acompanho – e porque eu fico sempre tão atento ao que dizes, minha vida, assim como ao que calas, ao que choras, ao que sentes falta, tenho muitas vezes o desejo insano de ser mais do que sou, de poder mais do que posso.
Um dia, se eu pudesse, se um jeito houvesse – eu fico sonhando com isso! –, eu queria ir lá no céu! Por uma escada bem alta ou num foguete bem moderno, não importa – eu só queria chegar lá.
Eu entraria disfarçado de alma, vestiria uma túnica branca, iria entrando, ninguém me notaria. Eu ficaria por lá um tempo, me familiarizando com o lugar. Então, como no poema bonito daquele moço português chamado Pessoa, quando eu notasse que Deus estivesse meio distraído, preocupado com uma guerra qualquer lá no fim do mundo, eu correria até a caixa dos milagres e roubaria alguns! Ninguém notaria, tenho certeza – e eu voltaria correndo com os milagres escondidos debaixo da túnica.
Ah, então eu faria o milagre de fazer o tempo rodar pra trás! Mas não todo o tempo, não o tempo de todo mundo: só o teu, só o teu tempo – e te faria menina de novo, bem menina. Uma noite, quando estivesses entretida olhando as estrelinhas brilhantes que colaste no teto do quarto, notaria que elas começariam a rodar e rodar e rodar, como num carrossel, a te hipnotizar: então, quando o movimento tivesse cessado, tu te notarias criança novamente! E ao levantar da cama, quase tropeçando na barra do pijama que teria ficado grande para teu corpinho que diminuíra, notarias que eu usara os outros milagres para te dar alguns presentes.
Morarias numa casa ampla e térrea, com varanda e quintal, com grandes janelas por onde muito sol sempre entraria e um jardim, pelo qual tu correrias perseguindo borboletas.
Encontrarias tua mãe na cozinha a preparar biscoitos – e ela teria o olhar amoroso que todas as mães devem ter e cuidaria para que teu uniforme da escola fosse sempre impecável, teus cadernos um primor. Mais tarde, quando tu fosses mocinha, seria ela tua amiga e protetora – e te esperaria ansiosa e acordada, a cada vez que te demorasses a chegar.
Na sala da casa, lendo jornal esparramado numa poltrona, encontrarias teu pai – e ele seria sempre presente e generoso e te beijaria na testa todas as noites, antes de dormir.
Eu teria colocado alma e voz nos teus bichos de pelúcia, para que conversassem mesmo contigo e vida eterna nos de estimação, para que fossem sempre filhotinhos, para que nunca morressem.
Terias uma irmã mais velha! Sim, uma irmã, de quem herdarias as bonecas e – mesmo que a contragosto – grande parte das roupas, mas que vivenciaria antes de ti muitas coisas da vida, a tempo de te poupar dos enganos e dores desnecessários: isso porque teriam, você e ela, todas as noites antes de dormir, muitas e muitas conversas em segredo, no quarto de meninas que dividiriam por muitos anos.
Na cadeira de balanço que haveria na varanda, tu notarias que eu trouxera de volta a tua avozinha, de quem sentes tanta saudade! Mas ela eu conservaria sempre velhinha, com colo quente e com olhos de aconchego, como aparece na fotografia, na única fotografia dela que me mostraste.
Eu chamaria num canto o teu anjo de guarda e ordenaria que ele assumisse forma humana – ele seria gordo e engraçado! – e tu, ao contrário da maioria dos mortais, poderia vê-lo de vez em quando, brincar com ele, rir de suas piadas e manias.
Eu transformaria cada lágrima que derramaste na vida num passarinho – e eles seriam muitos, muitos! Todo fim de tarde eles fariam algazarra por sobre o telhado da tua casa, antes de se abrigarem nos ninhos. Transformaria cada palavra de incompreensão ou desamor que ouviste numa melodia bonita, das quais jamais te esquecerias. Cada pedra em que tropeçaste, eu transformaria numa flor – e tu poderias enfeitar com elas os teus lindos cabelos escuros.
Por fim, como último ato da minha brincadeira de ser Deus por um dia, eu pegaria emprestado por um instante o teu travesseiro e o transformaria numa pessoa: e faria para ti um amigo – só um, só um amigo, não importaria seu nome, idade ou sexo – em que pudesses sempre confiar. Terias então alguém para quem contar teus medos e revelar teus segredos, para que eles não mais ficassem entalados em tua garganta, sabendo – como saberias – que aquele amigo só teu, nada desejaria de ti além de te ver feliz.
Sabendo que teria assim pavimentado de novo a tua estrada, eu poderia descansar e aguardar para muitos anos mais tarde, que tu – novamente feita mulher – te encontrasses comigo na vida, ainda que tendo a certeza de que então estaria eu velho demais para que me visses como teu homem. Contudo isso já nem me importaria mais – o essencial tu já terias me dado: me ensinaste a sonhar ao me levar pela mão para dentro do teu mundo e me explicaste o significado da expressão “para sempre”.
Finalmente, creio, eu entenderia: e te amaria, para sempre.
Olha, será que ela é moça?
Será que ela é triste?
Será que é o contrário?
Será que é pintura o rosto da atriz?
Se ela dança no sétimo céu
Se ela acredita que é outro país
E se ela só decora o seu papel
E se eu pudesse entrar na sua vida?
Olha, será que é de louça?
Será que é de éter?
Será que é loucura?
Será que é cenário a casa da atriz?
Se ela mora num arranha-céu
E se as paredes são feitas de giz
E se ela chora num quarto de hotel
E se eu pudesse entrar na sua vida?
Sim, me leva para sempre, Beatriz
Me ensina a não andar com os pés no chão
Para sempre é sempre por um triz
Ai, diz quantos desastres tem na minha mão
Diz se é perigoso a gente ser feliz
Olha, será que é uma estrela?
Será que é mentira?
Será que é comédia?
Será que é divina a vida da atriz?
Se ela um dia despencar do céu
E se os pagantes exigirem bis
E se um arcanjo passar o chapéu
E se eu pudesse entrar na sua vida?
(“Beatriz” - Edu Lobo / Chico Buarque)
***
4.10.08
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Um comentário:
Comentários recuperados - postados no antigo blog
enviado por: Carol
só a letra da música já diz tudo!!!!
Em: 12/09/2007 20:41:00
enviado por: B.R.
Mto linda essa brincadeira de ser Deus por um dia pra mudar a história da vida de quem se ama ... Texto sensível, delicado, poético. Parabens!
Em: 23/08/2007 04:42:43
enviado por: Deby
Mais uma viagem à reinos desconhecidos, um passado dolorido... Lembranças perdidas de tempos que mesmo que um dia voltasse a existir, nunca mais seria a mesma coisa!
Saudade de uma ingenuidade pura que dava a um ser a esperança com o gosto mais doce que poderia ter, olhar pra frente e achar que o mundo será perfeito, esperar ansiosamente o futuro como se esse fosse ser exatamente igual aos nossos sonhos de menina.
Pessoas que não voltam mais, cheiros, gostos, visíves de um tempo onde acreditar ainda era possível, principalmente no amor- cresceriamos e aquela pessoa estaria lá esperando, pronta pra dar a mão e caminhar junto... E qdo enfim chegamos no tão sonhado futuro, vemos que nada foi ou será igual... Restam apenas as doces lembranças, os nostálgicos sonhos e o gosto amargo da certeza de não poder voltar atras!
Em: 22/08/2007 19:03:18
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