5.10.08

O Peregrino

(Setembro, 2007)

Os pés cobertos de barro, a pele lanhada pelo sol e pelo vento, expressão fatigada no rosto, desce o peregrino a encosta do monte, rumo ao vale, no cair da noite. Nas mãos, uma lanterna.

Caminhando a passos cuidadosos pelo
rudimento pedregoso de estrada, chega a um marco divisório, onde um homem lhe aparece, fazendo-lhe sinal para parar.

- Boa noite, guardião! – diz o peregrino.
- Quem és e o que queres aqui? – indaga-lhe o homem, expressão amarrada e voz grave.
- Procuro por uma mulher
– responde o peregrino, secando o suor da testa nas costas do braço.
- E por que acreditas que esteja por aqui, nestes ermos caminhos?

- Caminho há muitos dias e noites, seguindo seu rastro. Já estive em muitos lugares. Agora suas pegadas e sinais me conduziram por esta estrada.
- E o que trazes contigo? Ouro, algo de valor? – quer saber o homem.
- Não, nada tenho de valor.
- Carregas uma arma?
- Apenas esta lanterna... E peço respeitosamente que me deixes passar e prosseguir a min
ha busca – diz o peregrino.
- E com o que me pagarás para que te deixes prosseguir?
- Apenas com minha gratidão, posto que nada possuo para ofertar.
- És um tolo!
– diz o guardião – Nada encontrarás nestes caminhos, acabarás perdido, sem saber como voltar!
- Não me importa...

- Muitos são os perigos!
- Não me importa...
- O que farias para encontrar tua amada? Matarias?
- Talvez...
- Morrerias?
- Certamente!
- És um tolo obstina
do – diz-lhe o guardião - Permitirei que prossigas, todavia não desejo ser culpado caso tu pereças pelo caminho! Foste avisado!
- Agradeço teus alertas, contudo prosseguirei... até o final deste caminho. Até o final de todos os caminhos. Até que a encontre. Muito agradecido, guardião! Adeus!


Passos lentos, porém decididos, prossegue o peregrino a caminhar, descendo mais e mais, rumo ao vale. Cai a noite, escura e hostil, mas ele não para. Desaparece por vezes a estrada em denso matagal, onde o vento zune asperamente, provocando o ranger de galhos, misturado a mil outros sons ameaçadores. Nasce o dia e a estrada ressurge, contudo transformada em quatro, em cin
co, em dez, em indecifrável labirinto – onde o engano pode conduzi-lo a intransponíveis paredões de rocha ou a mortais despenhadeiros. Atento, contudo, aos mais sutis sinais da amada, escolhe decidido a direção a seguir, determinado, incansável.

Outra noite, mais um dia, outro e outro.
Nem mesmo por um instante interrompe o peregrino a sua busca.

Algumas vezes, os sinais da mulher que busca mostram-se tão nítidos e ele a sente tão próxima, que chega a gritar-lhe o nome – e a ouvir sua voz, ao longe, respondendo. Nesses dias, enche-se de ânimo novo – e caminha vigoroso, certo de que aproxima-se o fim da longa busca. Outras vezes, contudo, denso nevoeiro cai sobre o caminho, ofuscando-lhe a visão. Tempestades precipitam-se inclementes, com trovoadas lancinantes a embotar-lhe os ouvidos – e nessas horas ele perde quase que por completo os sinais da amada. Envolvem-lhe a tristeza e o cansaço – chora de dor nesses dias. Todavia, aprende a esperar paciente que as intempéries cessem, que o mau tempo e as perturbações terminem – e prossegue.


Outro dia, mais uma noite, outra e outra.


Muitas pessoas cruzam o caminho do peregrino durante a jornada. Muitos o fitam com desdém, a criticar:

- Tolo, jamais a encontrarás!
- Ela perdeu-se para sempre, deves desistir!
- Para que embren
ha-te em tal busca? O que tem afinal ela de tão magnífico?
- Insensato, sonhador! Não notas que tal mulher nunca existiu, que foste apenas tu que sonhaste?


A esses não da ouvidos. Responde-lhes com igual olhar de desdém e segue, sem desviar-se do caminho.

Outros surgem que admiram-se da obstinação do homem. Tanto que aproximam-se dele no propósito de ajudar, embora nem sempre o possam fazer.


- Sim, a vi! Acaba de passar por aqui, prossegue e a encontrarás!
- Sim, a conheço! Não está longe de ti, persiste!


Uns, aconselham:


- Para chegar até ela, tu deves fazer isso e aquilo, e também aquilo...


Outros, apenas estimulam:


- Tal busca, com tal tenacidade e de tal beleza, certamente resultará em vitória! Tu vais conseguir, é teu merecimento!


Mulheres outras irrompem também o caminho do peregrino, a tentar confundir-lhe a determinação. Umas, impetuosas, a dizer:


- É a mim que buscas! Não notas? É a mim!


Outras, servis e embevecidas, a quase implorar:


- Leva-me contigo apenas até que a encontres!
- Serei tua pelo tempo que quiseres...


Nada e ninguém, todavia, é capaz de dissuadir o peregrino de seu propó
sito – e ele segue, determinado e só.

Numa madrugada de muito frio, em que uma nova tempestade se faz anunciar, um vento mais forte apaga-lhe a chama da lanterna – e em total escuridão, apavora-se ao ouvir por todos os lados o rugir de mil feras ignoradas a espreitá-lo nas trevas da mata. Nota então que, muito ao longe, surge a luz de uma outra chama – e ela vem se aproximando e se aproximando, até chegar bem perto e iluminar aquele local com grande intensidade, quase como se o dia tivesse já nascido. A conduzir a chama daquela poderosa lanterna, caminha uma velha senhora, de passos lentos, alvos cabelos e olhar plácido.

- És tu o viajante que empreende perigosa viagem em busca da amada? – questiona-lhe a mulher.

Diante da resposta afirmativa dele, revela:


- Ouvi falar de ti e vim em teu socorro.


A pedido dela, sentam-se ambos sobre uma grande pedra à margem da estrada – e ela lhe pede:

- Fala-me um pouco de tua menina, filho!
- A minha amada tem nos olhos a luz de duas estrelas, das mais brilhantes – começa o peregrino -, um sorriso perolado e belo, só presente no rosto das pessoas nascidas para a felicidade!

Ele não nota, mas seus próprios olhos e seu próprio rosto se iluminam a medida que fala dela – e prossegue:


- Dançava nua na ponta dos pés sobre os meus tapetes, sentindo a plenitude da alegria de ser a mulher de um homem, amada como nenhuma outra neste mundo de Deus!


Ante o
olhar amoroso da velha senhora, comovido, continua:

- Nossa vida juntos era um estado permanente de felicidade e eu, muitas vezes, de tão apaixonado, permanecia acordado ao lado dela enquanto dormia, no intento de admirar-lhe a beleza, vigiar-lhe o sono e adivinhar-lhe os sonhos – e sonhava comigo, muitas vezes, eu sabia!


Abaixando o olhar e adquirindo na voz um tom melancólico, conta:


- Um dia, seus olhos se embaçaram e seu sorriso se foi. Entristeceu-se e nunca mais dançou. Não se ouviu mais seu riso. Calou-se a sua voz. Soltou-me as mãos. Tentei segurá-la, mas foi em vão. Quando notei, já não a avistava. Desde então a procuro.
- Já se faz longa a tua busca...
- Cem dias e cem noites, sem sequer um momento descanso.
- É tortuosa a tua busca...
- No início não havia sequer pistas. Não sabia por qual caminho seguir. Errei e recomecei muitas vezes. Sigo agora seus sinais pelas trilhas deste profundo vale. Em algum lugar ela há de estar!


Compadecida, a velha senhora acaricia-lhe os cabelos e pede:


- Descansa, filho, por um momento apenas antes de prosseguir. Tu podes encontrá-la, mas deves permanecer sereno e forte.


E entregando-lhe a lanterna, diz:


- Tu levarás esta lanterna contigo e sua luz o orientará. Deves seguir caminhando na mesma direção, ao fundo do vale. Não posso acompanhar-t
e, deves ir só. Tu não estás longe mas deves saber que há perigos ainda.

E, ao beijar-lhe a face em despedida, conclui:

- Prossegue. Tu encontrarás o lugar. Ela está lá.

Invadido por uma nova dose de coragem, dá o primeiro passo adiante o peregrino, quando lembra de agradecer à gentil senhora. Vira-se então para trás e nota que ela desaparecera. Sem tempo para questionamentos e carregando nas mãos a poderosa lanterna que recebera como presente, segue decidido rumo ao fundo do vale, em passos largos e vigorosos, por um tempo e uma distância que já não calcula. São outros dias e outras noites, alguns de serenidade, outros de tormentosas tempestades – nada mais suficiente, contudo, para intimidar-lhe a marcha ou fazer apagar a luz que carrega nas mãos.

Um dia, avista finalmente, erguida numa clareira, misteriosa e soturna edificação – e sabe: ela está ali, naquela casa!

Dá mais alguns passos acelerados até o portão de metal que se ergue à frente da moradia e antes que p
ossa empurrá-lo, salta à sua frente, saído não se sabe de onde, um homem de aparência funesta, velho, baixo, atarracado, com o rosto marcado por chagas – e dos cantos de sua boca, corre espessa espuma. Está armado com sabres e adagas e seu olhar é ameaçador.

- Aonde pensas que vai, ó, forasteiro?! – pergunta ao peregrino.
- Vim buscar a minha amada e sei que ela vive nessa casa! E tu, quem és?
- Tu sabes be
m quem sou e sabes que é das minhas armas que ela é prisioneira!
- Pois não será mais, vou entrar e levá-la comigo!


Encaram-se co
m ódio, um de frente ao outro, a um palmo de distância.
- Tu não entrarás!
– grita o velho, colérico.
- Pois digo que entrarei
– retruca o peregrino.
- Como pretendes duelar comigo, ó, homem tolo? Com que armas?
- Com minha fé!
– o peregrino olha ainda mais dentro dos olhos do outro – E com meu amor por ela!

O velho enraivecido espuma ainda mais pelos cantos da boca. Desafiado, desembainha todas as suas armas e as aponta para o ousado oponente.

- Tu não entrarás!
- Digo que en
trarei! Tuas armas nada podem contra mim!
- Pois aviso:
se acaso entrares, não sairás! Nunca mais! Estarás também tu, condenado a viver na casa! – ameaça o velho.
- Pois ainda que seja assim, digo que entrarei. E a encontrarei! Viverei aqui com ela até o fim dos tempos se necessário for! Afasta de mim tuas armas! Afasta de mim tua figura nefasta!

E tendo dito, apenas com a força saída de seu olhar, atira ao chão o velho que, estatelado numa poça de lama, impotente diante da sua inabalável fé, limita-se a bradar xingamentos.

Empurra então o peregrino o pesado portão de metal e o atravessa. Chega até a escada que há na entrada da casa e, a medida que os pisa, os degraus rangem e se quebram. Empurra a porta. Entra. É um átrio silencioso e mal iluminado. Ele sabe que ela está ali, em algum lugar. Se conseguir iluminar devidamente aquele lugar, ele sabe, terá a chance de sair dali com ela – e fazer a viagem de volta. Caso contrário, já decidiu: permanecerá ali, ao lado dela, até a eternidade se necessário for.

Contudo, tem a certeza: a sua busca terminou.




Súbito me encantou
A moça em contraluz
Arrisquei perguntar:

- Quem és?

Mas fraquejou a voz
Sem jeito eu lhe pegava as mãos
Como quem desatasse um nó
Soprei seu rosto sem pensar
E o rosto se desfez em pó


Há de haver algum lugar
Um confuso casarão
Onde os sonhos serão reais
E a vida não

Por ali reinaria meu bem
Com seus risos, seus ais, sua tez
E uma cama onde à noite
Sonhasse comigo, talvez


Por encanto voltou
Cantando à meia-voz
Súbito perguntei:

- Quem és?

Mas vacilou a luz
Fugia devagar de mim
E quando a segurei, gemeu
O seu vestido se partiu
E o rosto já não era o seu


Um lugar deve existir
Uma espécie de bazar
Onde os sonhos extraviados
Vão parar

Entre escadas que fogem dos pés
E relógios que rodam pra trás
Se eu pudesse encontrar meu amor
Não voltava jamais!


("A Moça do Sonho" - Chico Buarque / Edu Lobo)


***

Um comentário:

Fábio Pegrucci disse...

COMENTÁRIOS RECUPERADOS DO ANTIGO BLOG

enviado por: Guilherme R.
Clima interessante, personagens e ambientação misteriosa. Interessante como usa a segunda pessoa e narra em tempo "presente".

Evidente que há uma metáfora por trás da narrativa, mas isso cabe ao autor.
Em: 19/09/2007 00:09:55


enviado por: Fênix

Não existe nada mais poderoso nesse mundo, que a força de nossos sentimentos mais puros, mais intensos.
Eles são capazes de nos levar ao céu, ao inferno... Ir e voltar dos mais variados lugares, sejam eles iluminados, obscuros. Mtas vezes provamos gostos amargos, mas que apesar de serem assim, por momentos nos fazem provar as delicias de alguns raros e únicos momentos.
Mesmo que que em nossas estradas encontremos caminhos sem saída, mesmo que nada tenha dado certo, n�o nos arrependemos, pois alguns flashes de luz acabam por salvar e eternizar momentos que para n�s foram únicos, e assim ficamos com a certeza de que faríamos tudo de novo, pois viver espaços que fizeram a diferença em nossa vida nos deixam o doce sabor de que valeu a pena ter estado naquelas terras, sob aquele céu.
Em: 13/09/2007 11:30:12