4.10.08

Esta Noite

(Agosto,2007)


Não vou adormecer. Não tão cedo. Não esta noite.


Não entregarei o meu sono ao amparo seguro dos seus braços.

Não hoje.

Vou me manter vigilante até que o laço se afrouxe. O laço, sim – é um laço o seu abraço. Como é tal qual uma máquina o seu coração, sempre exaltado a bombear sangue e paixão pelo seu corpo, todo o tempo. Quando se afrouxa o laço do seu abraço e eu sinto que as batidas do seu coração encontraram um ritmo mais lento, eu percebo então que o sono veio lhe trazer alguns instantes de paz que a sua vida – na qual me incluo – lhe tem negado.

Viro-me então, cuidadosa, sobre seu corpo inerte. Quero olhar seu rosto e enxergar o cansaço estampado nos seus olhos fundos, próxima o bastante para receber na face o sopro da sua respiração forte, vigorosa.

Hoje eu o quero assim, sereno e ausente. Quero longamente observá-lo privado de sua voz e de suas palavras, as que tanto me fazem rir, as que tanto me fazem chorar. Quero admirar adormecida, a fera apaixonada. Hoje eu o quero assim: desprotegido e meu.

Não ouso tocá-lo para não correr o risco de interromper-lhe o sossego do sono. Quero apenas olhá-lo – e lhe falar, lhe falar muito, ainda que sem palavras, o que minha voz tanto hesita, tanto teme, tanto cala.

Pelo menos hoje, pelo menos agora, esta noite, desperta a contemplar seu sono, não enxergarei no seu rosto marcado, de traços angulosos e marcantes, nem sinal do meu herói idealizado, nem resquício possível da fantasia de bravo cavaleiro que surgiu para me resgatar da masmorra, sequer sombra do homem que, com mãos de veludo e alma de bandoleiro, arrancou de dentro de mim o sentido e a graça de ser mulher.

Não hoje. Não esta noite.

Esta noite, só por esta noite, pego eu nas minhas mãos as rédeas da nossa história, que sempre estiveram nas suas. Esta noite, só por esta noite, amparo eu o seu corpo no meu colo, para afagar-lhe os cabelos, para lhe ninar. Não o quero fortaleza, nem porto, nem pai. Hoje eu o quero menino.

Hoje eu lhe aconchego em meus braços, meu amor, e lhe concedo o direito a chorar, temer, fraquejar, duvidar. Mas não lhe dou mais a possibilidade de sentir frio ou abandono, porque estarei aqui para lhe agasalhar e vigiar, porque hoje – pelo menos hoje, pelo menos esta noite – não lhe negarei a mulher que lhe tenho há tanto tempo sonegado.

Esta noite, diante da mansidão do seu sono de menino, sem a aspereza do som das palavras faladas, vou lhe contar a respeito dos caminhos pedregosos que meu amor trilhou em busca da rota de regresso, do desassossego de dias e noites sem fim em que senti meu espírito açoitado simultaneamente pela saudade e pela dúvida e das tantas e tantas batalhas que travei contra “a outra” que me habita.

Mas isso tudo lhe soprarei ao ouvido com tal candura, que lhe soará como cantiga de ninar a aquietar-lhe ainda mais o sono.

Não importa mais.

Pelo menos não agora. Não esta noite.

Esta noite basta que eu lhe consiga fazer saber que lhe é concedido também o direito ao não-saber e ao repouso tranqüilo; à ter seus passos amparados e seus vacilos relevados. Esta noite eu busco o seu perdão e a sua expressão mais desarmada. Seu corpo relaxado. Seu coração tranqüilo. Sua alma em paz.

Ainda que o raiar do dia venha nos devolver aos nossos papéis de sempre, eu desejo esta noite ser o que jamais fui, para que só assim possa despir-se, meu amor, das coisas todas que tanto lhe embelezam mas que também tanto lhe pesam – das suas armas de guerreiro, da sua pena, da sua voz, dos seus truques de amante.

Esta noite – ainda que seja apenas esta noite – farei do meu colo o seu berço. Será meu menino em meus braços – e nada mais lhe será exigido.



Vem, meu menino vadio
Vem, sem mentir pra você
Vem, mas vem sem fantasia
Que da noite pro dia
Você não vai crescer

Vem, por favor não evites
Meu amor, meus convites
Minha dor, meus apelos

Vou te envolver os cabelos
Vem perder-te em meus braços
Pelo amor de Deus

Vem, que eu te quero fraco
Vem, que eu te quero tolo
Vem, que eu te quero todo meu!

Ah, eu quero te dizer
Que o instante de te ver
Custou tanto penar

Não vou me arrepender
Só vim te convencer
Que eu vim pra não morrer
De tanto te esperar

Eu quero te contar
Das chuvas que apanhei
Das noites que varei
No escuro a te buscar

Eu quero te mostrar
As marcas que ganhei
Nas lutas contra o rei
Nas discussões com Deus

E agora que cheguei
Eu quero a recompensa
Eu quero a prenda imensa
Dos carinhos teus...



("Sem Fantasia" - Chico Buarque)

2 comentários:

Fábio Pegrucci disse...

Comentários recuperados - postados no antigo blog

enviado por: Lua

O amor desarma... Transforma um homem forte, viril em um frágil menino... é nessas horas que percebemos a força dos sentimentos qdo tão bem cultivados, regados, qdo a cumplicidade mútua falava apenas através de olhares e assim ambos não precisavam sequer mover os lábios, pois sabiam se entender naquela telepatia de almas, naquele compasso do pulsar dos corações...
Um simples abraço com a força intensa do verdadeiro amor é capaz nos nos fazer viajar por terras desconhecidas, por dentro de EUS que desconhecemos existir e nos surpreendemos ao depararmos com um ser que mora dentro de si próprio mas que s� toma formas diferentes qdo tocado por m�os mágicas que penetram no lugar exato do coração, onde a pulsação certeira faz cair ao chão nossa armadura e nos transforma no verdadeiro e puro ser que mtas vezes escondemos por medo da nobreza dos nossos próprios sentimentos!
Em: 17/08/2007 18:59:04

Taimemoinonplus disse...

Hum...taí, interessante! Vc gosta mesmo dessa licença poética de se passar por mulher,hein?!Não me admiro que seja fã do Chico.

Chico é flórida mesmo, mas dá licença de trazer outra música que acho que tem tudo a ver com o tema.

Guerreiro menino- Gonzaguinha

http://www.youtube.com/watch?v=nOzr1CciNE4